sábado, 17 de outubro de 2015

Seleção de denúncias não é unanimidade no Ministério Público

PRINCÍPIO DA OBRIGATORIEDADE

Seleção de denúncias não é unanimidade no Ministério Público

Dos 6.001.372 inquéritos policiais que o Ministério Público nos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal recebeu no ano passado, 720.804 resultaram no oferecimento de denúncias. Já no Ministério Público Federal, o número de investigações oriundas da polícia chegou a 486.558 no mesmo período. Desse total, 14.802 chegaram ao Poder Judiciário por meio de pedidos para a abertura de ações penais.
Os números são da pesquisa Ministério Público — Um Retrato, divulgado pelo Conselho Nacional do MP, e mostram que promotores e procuradores que atuam na área criminal, em ambos os ramos da instituição, têm sofrido com a excessiva carga de trabalho. Em razão disso, vem ganhando espaço internamente o debate sobre a possibilidade de se “escolher” o que levar ou não à Justiça.
A proposta foi defendida publicamente pelo procurador Andrey Borges, que integra a força-tarefa do MPF na operação “lava jato”, ao participar do XXI Congresso Nacional do MP, no último dia 7 de outubro, no Rio de Janeiro. Na ocasião, ele disse ser “inviável dar atenção aos casos relevantes, quando se está cheio de trabalho” e que não há “estrutura material para fazer a apuração de todos os casos”.
O procurador defendeu que o órgão faça melhor uso do princípio da oportunidade em vez do da obrigatoriedade, para poder dar mais atenção aos casos mais relevantes e com maior repercussão na sociedade, como os de corrupção. “É possível ver na própria Constituição uma pauta de valores. Então o MP, à luz dessa pauta, pode fazer determinadas escolhas. Na minha visão, o MP não está obrigado a processar todo e qualquer caso que não tenha a mínima repercussão ou no qual a culpabilidade seja muito pequena”, disse à ConJur, na ocasião.
A reportagem ouviu integrantes do MP e verificou que a proposta não é bem-vista por todos. A presidente da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), Norma Cavalcanti, disse que os promotores e procuradores só podem fazer o que a legislação autoriza.
“E hoje a legislação não nos autoriza [a fazer a seleção]. Lógico que tem casos de repercussão, como é o da "lava jato" e tantos outros. Temos mais de 30 mil ações por corrupção e improbidade nos estados, mas, pela legislação, temos que apurar tudo o que é incorreto e ilegal”, afirmou.
José Carlos Cosenzo, do MP de São Paulo e ex-presidente da Conamp, afirmou que a independência funcional não pode se sobrepor ao princípio da legalidade e que, se o Ministério Público começar a escolher o que deve ou não ser oferecido à Justiça, estará prevaricando.
“A partir do momento que eu começar a escolher quem processar, estarei praticando crime de prevaricação. Não posso fazer isso. A lei é bem clara: temos independência funcional. Então, se entendemos que não é caso de denunciar, mas de arquivar ou requisitar uma diligência, é uma coisa. Mas se entendemos que é um crime e não denunciamos, estaremos praticando prevaricação. O princípio da obrigatoriedade não é mitigável. Esse é um pensamento contrário ao espírito institucional”, ressaltou.
Lauro Machado Nogueira, procurador-geral de Justiça de Goiás e presidente do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais de Justiça dos Estados e da União, destacou que a Lei 9.099/1995, que trata dos juizados especiais cíveis e criminais, já deu alguns passos a fim de acabar com o excesso na máquina judiciária decorrentes dos crimes de menor potencial ofensivo.
A demanda ainda continua em alta, mas, para o procurador, a Constituição impõe que o MP é o titular da ação penal e que a instituição não pode renunciar a isso. “A Constituição impõe que o MP é o titular da ação penal, não o titular de algumas ações penais”, ressaltou.
Nogueira explicou que os MPs dos estados contam com os Gaecos, grupos especializados que atuam em grandes investigações, geralmente que envolvem crimes contra a administração pública, e que essas unidades têm ajudado a fortalecer a atuação da instituição contra os crimes mais graves.
“Não tem isso no MPF, mas, no que tange aos demais crimes, eu tenho como sugestão para se cumprir o princípio da obrigatoriedade talvez ampliar um pouco o alcance do instituto da transação penal nos juizados especiais criminais, caso isso seja identificado como sendo de total necessidade. Mas a escolha de trabalho não cabe ao MP. Entendo que o MP não pode renunciar à Constituição, que diz o MP é o titular exclusivo da ação penal. Temos que melhorar nossa atuação, mas não abrindo mão disso”, afirmou.
'Seletividade já existe'
Para o promotor André Melo, de Araguari (MG), o termo “seletividade” gera certo preconceito internamente, mas na prática já ocorre. Nesse sentido, ele destacou o dado apresentado no congresso por Andrey Borges de que apenas uma em cada dez ocorrências por roubo em São Paulo resulta na abertura de inquérito. “Na verdade, a seletividade já existe e é feita pela polícia, sem marco regulatório e sem controle algum.”
Segundo Melo, a linha mais garantista do MP acha a proposta abusiva, enquanto a linha do funcionalismo defende a escolha como política criminal de prioridade. De acordo com ele, com base na experiência de muitos países que passaram, a partir da década de 1990, a permitir que o MP deixe de processar delitos de pequeno e médio porte cometidos sem violência. Algumas nações nem sequer exigem o acordo penal nesses casos, outros transformaram os pequenos furtos em uma ação condicionada à representação da vítima ou em ação penal privada.
“A seletividade [oportunidade da ação penal, em vez de obrigatoriedade] permite uma racionalização e evita o absurdo que há no Brasil, onde se gasta uma fortuna para processar e onde, ao fim, se criam meios para flexibilizar a execução penal e até perdoar o condenado”, ressaltou.
Para o procurador Deltan Dallagnol, que também atua na operação “lava jato”, a seleção visa a eficiência no combate ao crime. “Quando se fala de seletividade, na verdade se fala de eficiência. Esse é um critério de discricionariedade que existe em diversos países do mundo, como os Estados Unidos. E não se está falando aqui de escolher entre casos que sejam semelhantes, mas sim de escolher entre uma corrupção na Petrobras e o preço e orçamento de dez casos de moeda falsa, cada um deles de R$ 50. O que a sociedade espera que eu faça? No que a sociedade espera que eu invista o meu tempo? Que eu invista meu tempo processando 100, 200 ou 500 casos envolvendo falsificação de dinheiro de R$ 10 ou invista em um caso que investiga uma corrupção de R$ 10 milhões?”, argumentou.
Na avaliação dele, a investigação deve ser escolhida de acordo com critérios de prioridade, partindo do pressuposto do que a sociedade espera e do que a Constituição preconiza. “Não temos dúvida de que é impossível fazer tudo. Se não é possível fazer tudo bem-feito, temos que selecionar o que vai ser feito, de acordo com critérios constitucionais legais e atendendo a sociedade”, destacou. 


 é correspondente da ConJur no Rio de Janeiro.

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