quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

A MEMÓRIA DE LUTA DE UM POVO É PARTE DE SUA PRÓPRIA LUTA

A memória de luta de um povo é parte de sua própria luta. As nações são feitas dessas lutas, produtoras de experiências e aprendizados, identidades sociais e políticas estruturais da luta política de classes nas nações modernas, herois e mártires. Sempre estão associadas a simbologias ideológicas, costumeiramente interpretadas e reinterpretadas a posteriori. Tudo se soma num poderoso processo de hegemonias e contra-hegemonias que perduram às vezes por décadas. No plano histórico e cultural, a batalha pela hegemonia enquanto liderança política, cultural e moral da nação tem um peso maior do que se supõe em meio às refregas cotidianas. Elas provêm também da memória.

Por isso o direito à verdade é fundamental, mormente após os regimes ditatoriais. As classes econômicas dominantes no Brasil foram em geral crueis com respeito à memória da luta popular. Instituiu a “terra arrasada” sobre tudo que restou delas. Ao contrário, mesmo que ao nível apenas da história oral, a experiência ficou marcada no imaginário coletivo de uma multidão popular e foi, cedo ou tarde, resgatada “oficialmente”. Daí, na luta política, a importância de o Estado nacional apoiar esse resgate e assumir a responsabilidade pelos crimes cometidos. Ponto para a decisão do governo em promover a Comissão da Verdade. Não nos move a vingança, mas a justiça
Amanhã se completam 35 anos da chamada Chacina da Lapa, na qual foram trucidados Pedro Pomar e Ângelo Arroyo, que participavam de uma reunião clandestina da direção nacional do PCdoB. Também foram presos diversos outros dirigentes entre os quais Drummond, assassinado poucas horas depois em dependência da repressão. A operação foi bárbara e cruel. O comandante da operação foi o general Dilermando Gomes, inesquecível pela covardia do feito em nome das Forças Armadas brasileiras. Todo um povo havia sido proclamado “inimigo interno”, dissociando as forças armadas dos interesses da nação naquela quadra.
Não tardou e o episódio foi levado às dimensões que tinha de fato, desde a conquista da redemocratização. Foi um marco, seguido da prisão e assassinato de Manoel Fiel Filho e de Wladimir Herzog. Repercutiu internacionalmente, isolou o regime militar e até mesmo acelerou a sua queda. Demarcou o lugar do PCdoB na luta democrática, ao lado de extensas forças, e produziu um giro político na orientação do partido a partir dali. Coube ao PCdoB o preço mais elevado por esses avanços.
Dos que morreram na Chacina da Lapa não nos esquecemos, igualmente dos que foram detidos. Com sua luta eles regaram o solo não só da redemocratização, mas de uma vaga popular, que foi alcançando conquistas até a histórica vitória presidencial de 2002, com avanços importantes hoje num quadro de acumulação de forças para as correntes avançadas. O exemplo deles permitiu, de vários modos, alcançar conquistas importantes para os rumos da nação e do fortalecimento daquele mesmo partido, o PCdoB, empenhado em abrir ao caminho a uma perspectiva socialista.
Ontem, 14 de dezembro, o vereador Jamil Murad promoveu um Ato na Câmara de Vereadores de São Paulo em registro dos 35 anos passados. Na ocasião, me veio à mente que ninguém entre nós, que esteja na luta desde esses anos de chumbo no início da década de ‘970, jamais esquece as circunstâncias em que teve notícia do episódio. A história oral enriquece também a memória.
Pessoalmente, estava em Ribeirão Preto, terminando o quinto e penúltimo ano da Faculdade de Medicina da USP. Havíamos vencido algumas semanas atrás as eleições ao Centro Acadêmico Rocha Lima. Em 15 de novembro, havíamos eleito um vereador comunista, absolutamente clandestino, na corrente popular do PMDB – era Antonio Calixto. Dirigi sua campanha como presidente do Centro Acadêmico. Estávamos avançando no trabalho partidário extensamente, mas em absoluta clandestinidade e ilegalidade – o diretor da Faculdade e o superintendente do DOPS local (homem excomungado pelo papa por tortura contra uma madre) brandiam abertamente contra os comunistas pela imprensa e davam nomes a seus líderes.
Dei plantão de 24 horas dia 16 de dezembro, voltando às 7 horas da manhã para encontrar-me com os companheiros em casa (estudávamos e reuníamos muito pelas madrugadas, fora dos horários de aulas e atividades). Senti algo ruim no ar: uma tristeza profunda, gente chorando. Já haviam saído os jornais, que eu não lera. Foi um choque que nos paralisou instantaneamente. Tudo ruíra: o difícil trabalho para reestruturar o PCdoB a partir da direção nacional que se recompunha, após o pesado golpe da derrota da experiência no Araguaia. Um baque profundo.
Aquilo nos deixou sem contato partidário por vários meses, durante os quais não o cessamos entretanto. Foi difícil recuperar os contatos e tudo tardou. Quando o fizemos, outra dificuldade: a experiência em Ribeirão Preto estava exposta, devia eu me retirar rapidamente. Entretanto, entrava no último ano de Medicina e liderava a primeira greve nacional pelo direito à residência médica automática, a qual foi vitoriosa (nela repus relações com o amigo Sócrates Brasileiro, da mesma turma). Não podia sair de lá nessas circunstâncias. Orientação: submergir politicamente! Passei ‘977 nessa condição, formei-me dia 16 de dezembro, casei-me dia 23 para, na “lua-de-mel” servir de estafeta e apoio a uma nova reunião da direção nacional., absolutamente clandestina em Guarujá, durante uma semana internado num aparelho. Feliz porque se passara um ano da Chacina da Lapa e já tínhamos novo núcleo de direção instituído. Foi aí que conheci Dynéas Aguiar, amigo de todas as horas, e José Duarte, já falecido.
O resto da história foi duro. Recém formado, fomos indicados, eu e minha companheira Sara Sorrentino, a montar um aparelho sob a fachada de médico, em cidade remota da Grande São Paulo, onde funcionava a gráfica que permitiu produzir A CLASSSE OPERÁRIA, que possibilitaria reestrutrurar o PCdoB. Alguém a captava pela rádio Tirana, a transformávamos em jornais depois distribuídos à direção partidária. Trabalho pesado, feito às madrugadas, com maquinário que precisava ser escondido. Anos depois soube que o “captador” eram Carlos e Lúcia, o admirado jornalista e publicista Carlos Azevedo, amigos diletos até hoje. Fiquei três anos nisso, quando nasceram dois de meus filhos, Pedro e Isa. Ocasião houve em que uma enchente invadiu a casa, Sara grávida, as máquinas sob risco, não podíamos chamar ninguém para nos ajudar, um quase-pânico.
Enquanto isso a luta pela redemocratização avançava, e era alavancada pelo movimento popular. Em 1979 a anistia trouxe de volta do exílio outros dirigentes nacionais, que houveram realizado, em condições também difíceis, a 7ª. Conferência Nacional em Tirana, Albânia. A ditadura caiu, fez-se a Constituinte, enfrentou-se a crise do socialismo e a ofensiva neoliberal. Mas o povo venceu em 2002 e mantém o governo central em mãos de forças avançadas.
A democracia venceu, o povo venceu, o PCdoB venceu. Pagou preço elevado, mas venceu. Seu desenvolvimento foi retardado pela perseguição, mas venceu.
Por isso, quando se debate hoje a questão democrática, sob os auspícios falaciosos da oposição, é preciso lembrar: ninguém pode dar lições de democracia aos comunistas brasileiros, pode-se no máximo ombrear-se com eles, mas não ao preço do sangue derramado. Outra lição: não se pode desligar a luta democrática da ingente luta nacional, ou seja, por uma nação desenvolvida, moderna, de progresso material e espiritual para todo o povo. O PCdoB existente hoje, em crescente expansão e afirmação, recolhe todo esse manancial de experiências para seguir adiante na mesma luta. Sabe-se por quê: porque se luta por ideais elevados, revolucionários, com paixão e ciência políticas.
É por isso que a honra e dignidade do PCdoB está inscrita na história política nacional nós a honramos a cada dia e cada hora. Nada haverá de toldá-la. Sabem o que a alimenta, além dos ideias? A vigilância e a confiança de toda essa geração de militantes e amigos, até hoje conosco, somados a uma multidão que veio para nossas fileiras. Por isso digo: há sempre que falar das “velhas coisas” para as novas gentes. É a memória da luta!

Publicado por waltersorrentino em 15/12/2011

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