Por Leonardo Marcondes Machado
Se o Estado é de Direito, a segurança pública não
pode ser militarizada.
As democracias exigem, de fato, clara distinção entre as funções dos órgãos
policiais e das Forças Armadas[1]. Afinal de contas,
a guerra é atividade de militares, nunca o
policiamento cidadão. Por óbvio, a segurança
pública, em um Estado Democrático de Direito, só
pode ser de natureza civil.
É bem verdade que o autoritarismo estatal festeja a
militarização do controle social. Não por outra
razão essa lógica de combate foi tão reforçada
durante os períodos de exceção. Vale lembrar a
reformulação na segurança pública brasileira promovida pelo golpe de 1964,
com a transferência do policiamento ostensivo das corporações civis para as
militares[2], o que permanece até hoje, além da participação direta das Forças
Armadas em funções policiais e punitivas[3], dentre outras medidas adotadas
para a repressão dos inimigos (políticos) à época.
Nesse contexto, militarização representa o processo de adoção e emprego de
modelos, métodos, conceitos, doutrinas, procedimentos e pessoal militar em
atividades de natureza policial, conferindo assim natureza bélica às questões
de segurança pública[4].
Vê-se, portanto, mesmo nesta leitura preliminar, que militarização não se
restringe ao uso de farda ou de armas, à existência de patentes ou ao modelo
disciplinar hierárquico de certa instituição. O núcleo da lógica militar reside
no extermínio, na ideia de combate ao inimigo (antes político, agora
criminoso). A política de segurança, nessa lógica militarizada, transforma-se
Desmilitarizar a segurança pública é garantir
a vida no Estado de Direito
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em tática de guerra, e os órgãos policiais passam a atuar segundo paradigma
bélico[5]. As Forças Armadas e as polícias parecem, então, mudar de papel e
esquecer as suas diferenças fundamentais[6].
Um breve esclarecimento. É preciso reconhecer que a militarização policial
não foi invenção da ditadura brasileira. Até mesmo porque alguns estudos
fazem referência a organizações policiais militares em território brasileiro no
século XVI e outros no século XIX, quando de fato se criou a primeira unidade
de policiamento ostensivo regular e em tempo integral, que foi a Guarda Real
de Polícia, em 1809, bastante subordinada ao Exército Nacional. Há ainda
quem identifique o início do processo de militarização das polícias brasileiras
com o Decreto 3.598/1866, que promove a divisão das instituições em civil e
militar; fenômeno posteriormente intensificado pelos trabalhos da Missão
Militar Francesa, em 1906, com as forças policiais paulistas na reformulação de
sua disciplina, militarização e formação de uma nova cultura[7].
Contudo, inegável o reforço ao viés militarizado da segurança pública,
conforme lógica bélica de combate e extermínio de inimigos, durante o
período da ditadura (ou “exceção brasileira”)[8]. Esse foi, sem dúvida, o
momento de consolidação da militarização do controle social e da violência
estatal. O “inimigo comunista” demandou alteração radical na estrutura de
segurança, cuja mostra evidente fora a subordinação de todas as polícias
estaduais ao controle e coordenação do Exército, conforme dispunha o
Decreto-Lei 667/69[9]. Explica Soares que “a ditadura militar e civil de 1964
simplesmente reorganizou os aparatos policiais, intensificou sua tradicional
violência, autorizando-a e adestrando-a, e expandiu o espectro de sua
abrangência, que passou a incluir militantes de classe média”[10].
Ocorre que esse primado autoritário foi incorporado pela Constituição de 1988,
tida como “cidadã”, na forma de “exceção permanente na segurança
pública”[11]. Forças Armadas e segurança pública foram reunidas sob o
mesmo título na estrutura normativa constitucional, atualmente denominado
Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas. Manteve-se a autonomia
das Forças Armadas, consideradas última instância de garantia dos poderes
republicanos (artigo 142, caput, da CRFB), bem como o controle do Exército,
ainda que parcial, sobre as Polícias Militares (artigo 144, parágrafo 6º, da
CRFB). Essas, por sua vez, permaneceram como responsáveis pelo
policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública (artigo 144,
parágrafo 5º, da CRFB) ao mesmo tempo em que constituem força auxiliar e
reserva do Exército (artigo 144, parágrafo 6º, da CRFB).
Vale lembrar que o contrário também poderá ocorrer. A LC 97/99, que dispõe
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sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças
Armadas, permite a sua atuação, “na garantia da lei e da ordem, por iniciativa
de quaisquer dos poderes constitucionais”, nos termos das “diretrizes baixadas
em ato do presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados
à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do
patrimônio, relacionados no artigo 144 da Constituição” (artigo 15, parágrafo
2º, da referida Lei). Prevê, ademais, como atribuições subsidiárias das Forças
Armadas, ações preventivas e repressivas de segurança, na faixa de fronteira,
contra “delitos transfronteiriços e ambientais”, o que pode incluir, dentre
outras, atividades de “patrulhamento” e “revista de pessoas, de veículos
terrestres, de embarcações e de aeronaves” (artigo 16-A da referida Lei).
A tragédia normativa só não é pior que o drama de sua realidade prática,
marcada por flagrante desrespeito aos direitos fundamentais e elevado nível
de incivilidade mediante perniciosa simbiose autoritária entre órgãos do
Poder Judiciário, Ministério Público, polícia e Forças Armadas.
As famosas Operações de Garantia da Lei e da Ordem[12], já realizadas em
território nacional e admitidas oficialmente pelo governo brasileiro, podem
ser tomadas como exemplo. A ocupação militarizada de espaços territoriais,
normalmente acompanhada de medidas típicas de exceção, transforma-se em
política de segurança pública em face da população de “consumidores falhos”
(Bauman) que marcam a “ralé brasileira” (Jessé Souza). Revistas
indiscriminadas, conduções coercitivas para averiguação, mandados de busca
e apreensão coletivos e outros abusos constituem os meios operacionais do
Estado de Exceção (Agamben) militarizado no Brasil, cujos efeitos genocidas
podem ser facilmente percebidos na atual política de “guerra às drogas”.
Sublinhe-se a questão central. O problema da militarização na segurança
pública brasileira não se limita às polícias, tampouco a um ente específico. É
evidente que a polícia precisa ser desmilitarizada, como destaca a Anistia
Internacional em seu respeitado informe sobre O Estado dos Direitos Humanos
no Mundo (versão 2014/2015) e reconhecem os próprios policiais brasileiros
em pesquisa recente, mas não é só. É preciso afastar, na realidade, a
“militarização ideológica da segurança pública”[13]. A efetiva desmilitarização
está para além da substituição de nomenclatura da Polícia Militar ou mesmo
de sua completa desvinculação em relação ao exército.
Segundo Karam, um debate sério sobre desmilitarização não pode se
concentrar apenas na ação dos estigmatizados policiais e blindar a esfera de
responsabilidade do Ministério Público, do Poder Judiciário, de governantes e
legisladores, da mídia, da sociedade como um todo[14]. O desafio está em
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imprimir=1 4/5 romper com esse “verdadeiro habitus militarizado nas questões que envolvem
tanto o direito à segurança quanto a segurança dos direitos”[15]. Ou seja:
superar a completa negação da alteridade que informa uma política de
segurança pública entorpecida pelo ideal militar[16].
Esse é o ponto fulcral para o estabelecimento de qualquer tipo de resistência
democrática. É preciso operar um verdadeiro giro paradigmático conforme o
primado da razão ético-crítica. Isso significa estruturar, no âmbito normativo e
prático, um sistema de segurança pública desmilitarizado pela consideração
maior da vida humana. Vida humana que, segundo Dussel, “não é um conceito,
uma ideia, nem um horizonte abstrato, mas o modo de realidade de cada ser
humano concreto, condição absoluta da ética e exigência de toda
libertação”[17]. Em suma: trata-se de uma fuga do paradigma da guerra e da
morte para se estabelecer a partir da cidadania e da vida.
[1] ZAVERUCHA, Jorge. Relações Civil-Militares: o Legado Autoritário da
Constituição Brasileira de 1988. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. O que
resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 52.
[2] ZAVERUCHA, Jorge. Relações Civil-Militares..., p. 56.
[3] SCHWARCZ, Lilia Mortiz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia.
1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 467, 468.
[4] CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Questões preliminares para a
discussão de uma proposta de diretrizes constitucionais sobre a segurança
pública. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 6, nº. 22, p. 139-182, 1998.
[5] L’HEUILLET, Hélène. Alta Polícia, Baixa Política. Cruz Quebrada, Portugal:
Editorial Notícias, 2001, p. 199.
[6] ZACCONE, Orlando. Indignos de Vida: a forma juridica da política de
extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. 1 ed. Rio de Janeiro: Revan,
2015, p. 210.
[7] PEDROSO, Regina Célia. Estado Autoritário e Ideologia Policial. Coleção
Histórias da Intolerância. São Paulo: FAPESP, 2005. p. 130.
[8] TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura: a exceção
brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 10.
[9] SILVEIRA, Felipe Lazzari da. Reflexões sobre a Desmilitarização e
Unificação das Polícias Brasileiras. In: IV Congresso Internacional de Ciências
Criminais da PUC-RS, 2013, Porto Alegre. Anais do IV Congresso Internacional
de Ciências Criminais. Porto Alegre: EDIPUC/RS, 2013.
[10] SOARES, Luiz Eduardo. Por que tem sido tão difícil mudar as polícias?. In:
____ (et. al). Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua
superação. São Paulo: Boitempo, 2015, p. 28.
[11] ZACCONE, Orlando. Indignos de Vida..., p. 248.
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[12] BRASIL. Portaria Normativa n. 186/MD, de 31 de Janeiro de 2014, publicada
no Diário Oficial da União n. 23, de 03 de Fevereiro de 2014. Disponível em:
.
Acesso em 05.04.2014.
[13] SILVA, Jorge da. Militarização da Segurança Pública e a Reforma da
Polícia. In: Bustamante, Ricardo; Sodré, Paulo César (Org.). Ensaios Jurídicos: o
direito em revista. Rio de Janeiro: Ibaj, 1996, p. 497-519.
[14] KARAM, Maria Lucia. Violência, Militarização e “Guerra às Drogas”. In:
____ (et. al). Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua
superação. São Paulo: Boitempo, 2015, p. 34 - 38.
[15] CASARA, Rubens R.R.. Militarização da Segurança: um sintoma da tradição
autoritária brasileira. In: SILVA, Givanildo Manoel de. Desmilitarização da
Polícia e da Política: uma resposta que virá das ruas. Uberlândia: Pueblo, 2015,
p. 149.
[16] CASARA, Rubens R.R.. Militarização da Segurança..., p. 152.
[17] DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação na Idade da Globalização e da
Exclusão. 4 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012, p. 11.
Leonardo Marcondes Machado é delegado de polícia civil em Santa Catarina,
mestrando em Direito pela UFPR, especialista em Direito Penal e Criminologia,
além de professor de Direito Processual Penal em cursos de graduação e pósgraduação.
Revista Consultor Jurídico, 11 de agosto de 2015
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