Entre o horror e a demência
Com um ideário furtado ao Ku Klux Klan, o bolsonarismo se afirma enquanto a Constituição jaz no fundo do lixo e a justiça tira a venda com as próprias mãos
Regimes de ultradireita infelicitaram povos diversos. Para citar os mais notórios dos últimos cem anos vale citar fascismo, estalinismo, nazismo, ditadura chinesa no período mais feroz. Mas de ultradireita foram também as ditaduras sul-americanas, inclusive a nossa de 21 anos, erguida à sombra da típica hipocrisia verde-amarela, a manter aberto um Parlamento constantemente sob ameaça e um Judiciário de paus-mandados.
Mas que dizer da divisão do Oriente Médio segundo as conveniências de Grã-Bretanha e França, e das consequências deste jogo de interesses, entre eles Israel de Netanyahu? E que dizer dos EUA, inesgotavelmente inclinados a usar a força das armas com o pretexto de ministrar mundo afora pretensas lições de democracia e liberdade, do Vietnã a Granada, do Iraque ao Panamá, dos golpes latino-americanos ao Afeganistão?
O reacionarismo tem inúmeras maneiras de se manifestar e impor conforme as circunstâncias históricas. O bolsonarismo é fenômeno genuinamente brasileiro ao representar o inescapável resultado do golpe de 2016, desferido pela aliança entre os próprios Poderes da República com o fatal e maciço apoio da mídia nativa.
Trata-se da prepotência em estado puro, baseada em um ideário digno do Ku Klux Klane de um neoliberalismo elevado à enésima potência a deixar pálidos de espanto os entreguistas de antanho e até os mestres de Chicago.
Seria possível algo similar ao bolsonarismo em países civilizados e democráticos? O nacional populismo de extrema-direita avança na Europa, por razões diversas das nossas, promovido pelos efeitos do neoliberalismo a provocar o enriquecimento de poucos e o empobrecimento da larga maioria.
A imigração dos foragidos de conflitos e da miséria amedronta as populações europeias e excita os políticos oportunistas. Mesmo assim, ali vigora a democracia, as Constituições são respeitadas, as Altas Cortes funcionam com independência total, até mesmo onde a ultradireita está no poder alcançado pelo voto.
O Brasil, um país em vão destinado à grandeza e ao bem-estar, está a uma distância do direitismo europeu que até as botas das 7 léguas não conseguiriam percorrer. O bolsonarismo é construído sobre o avanço tecnológico capaz de embrutecer uma população ignorante e inculta, ricos ou pobres, tanto faz.
O extremo reacionarismo bolsonarista é perfeitamente simbolizado por seu líder de tosco pensamento e fala manquitolante, herói irreparavelmente brasileiro, incapacitado à compreensão do problema central do País, o monstruoso desequilíbrio social, ou, por outra, a desigualdade.
A Europa deixara havia larguíssimo tempo de ser medieval, quando na Alemanha e na Itália surgiram, por razões diversas, ditaduras totalitárias. No Brasil da casa-grande e da senzala vivemos a treva que se seguiu à queda do Império Romano do Ocidente.
Neste Brasil sempre exposto ao risco do golpe, estamos entregues a um exército de ocupação e a uma Justiça que tirou a venda com as próprias mãos. Um terço da população deixa-se explorar de olhos marejados pelos ditos pastores evangélicos, enquanto os postes expõem cartazes de milagreiros em complexos casos de amor e de quem sabe como recuperar a carta cassada dos motoristas infratores.
Desde o impeachment de Dilma Rousseff, a Constituição de 1988 jaz no fundo do lixo e meus imprudentes botões sugerem com alguma malignidade que talvez venha a ser substituída pela Santa Bíblia. Acima de tudo, Bolsonaro coloca Deus. Pergunto-me se sabe que o Filho morreu na cruz por ter defendido a igualdade entre todos os homens.
Gostaria de repetir o poeta Renato Suttana ao falar de um romance em andamento “que, entre a farsa e a paródia, é só bufa rapsódia”. Certa vez escrevi algo parecido a respeito de momentos difíceis, desta vez, entretanto, a situação nada tem de bufo. Estamos a encarar uma perspectiva de extrema violência tanto mais em um país que aprecia brigas díspares, na proporção de 10 contra 1, o solitário inimigo.
Não sei até que ponto estará a oposição com animus bellandi, vontade de lutar. Se for possível, contudo, formar sem preconceitos uma aliança entre os frequentadores da razão, a concordância em torno do objetivo principal apontará um caminho redentor.
Agradou-me, por exemplo, a disposição de Alberto Goldman, que conheci como “vermelho” em tempos de ditadura e que se tornou nestes dias um tucano capaz de alçar voo ao votar, “pela primeira vez”, no PT. Fernando Henrique, em compensação, não sai do chão. Não fosse a ameaça de Mario Covas de abandonar o PSDB, é bom recordar, FHC teria sido chanceler de Collor.
Erros em demasia foram cometidos no chamado campo progressista para favorecer Bolsonaro. Seria a ocasião de corrigi-los em nome do propósito comum, com a devida bonomia que uma respeitável dose de autoironia há de recomendar.
Quando menino, se eu dava uma de sabichão, minha avó materna sentenciava: “Desça do cavalo de Orlando”. Pois a quem está montado, repito como apelo a admoestação da avó. Ah, sim, Orlando, o desassombrado paladino da corte franca, herói da obra-prima de Ludovico Ariosto, “Orlando Furioso”. Creiam, é oportuno descer do cavalo para repensar em tudo.
Ocorre-me lembrar o MDB do doutor Ulysses, reunia todos os opositores da ditadura. Tratou-se de fato de uma frente democrática da qual nasceu a campanha das Diretas Já, o mais importante movimento popular realizado no Brasil, e sem o apoio da Globo, ao contrário daquele pelo impeachment de Collor, quando ao som do plim plim os meninotes da cara pintada foram fazer festa.
Contra o bolsonarismo, o País precisa de uma frente democrática acima dos partidos, empenhada em chegar ao povo para leva-lo à consciência da cidadania e cumprir a tarefa que a dita esquerda nativa não soube ou não quis cumprir.
CartaCapital está onde sempre esteve na prática do jornalismo. Na minha vida de profissional foi determinante o embate contra a censura ditatorial. Compreendi então em profundidade a virtude dos homens “dispostos a contar o que acontece”, como sustenta Hannah Arendt, a serventia da profissão credenciada a deixar uma pista para os historiadores do futuro.
Não tememos o bolsonarismo: veio movido pelo propósito de impor a ORDEM, aquilo que supões ser a ordem para reduzir o País a escombros com o uso crescente da violência. Aí está a semente do seu fracasso. Inescapável, a curto ou médio prazo.
Estamos na iminência de ver Sergio Moro, o torquemadazinho endeusado pelos propagandistas midiáticos, nomeado para um ministério de grande alcance, além da Justiça, em benefício da ORDEM bolsonarista. Um caríssimo amigo de fino intelecto propõe intitular “A Confissão” este quadro da tragédia suspensa entre a demência e o horror.
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