terça-feira, 22 de dezembro de 2015

O impeachment é um momento de abalo político


por Matheus Leitão

O impeachment é um momento de abalo político, diz Luís Roberto Barroso


O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), durante entrevista em seu gabinete











 O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), afirmou, em entrevista exclusiva aoBlog, que “a política não pode destruir o país”. Para o ministro, “o impeachment é um momento de abalo político, e é isso que nós estamos atravessando agora”. “O país vai passar alguns meses sob turbulência, com o custo que isso tem para a sociedade”, disse.

Defensor de um modelo semipresidencialista, sistema de governo híbrido que une o parlamentarismo à preservação de alguns poderes do presidente eleito pelo voto direto, ele acredita que a conveniência de fazer essa mudança agora tem que ser uma decisão da sociedade. “Trocar o pneu com o carro em movimento pode ser uma alternativa ou não. Aí já não é mais um juízo institucional, é um juízo político que eu não me sinto autorizado a fazer. Mas verdadeiramente precisamos fazer alguma coisa”.

Na última semana, o voto de Barroso foi decisivo para a definição do rito do impeachment, porque foi seguido pela maioria da Corte. O ministro nasceu em Vassouras, interior do Rio de Janeiro, mas viveu na capital fluminense a partir dos cinco anos. Em Brasília, nos últimos anos, tornou-se um dos mais respeitados advogados do país antes de ser escolhido por Dilma Rousseff, em 2013, para se tornar ministro do STF.

Quando a presidente Dilma o convidou, Barroso já tinha aceitado um convite do Instituto de Altos Estudos de Berlim, na Alemanha, e teve de desistir de dar aulas na instituição que recruta professores de várias partes do mundo para assumir no Supremo. Apaixonado pela docência, o professor Barroso demonstra isso quando o assunto é dar aulas, orientar teses de doutorado e até participar de bancas.  “É o que gosto de fazer”, diz.

Isso foi comprovado em um discurso que proferiu como patrono de uma turma da UERJ, em 2015, que viralizou na internet pelo alto conteúdo emocional. Com uma visão humanista da vida, Barroso formou-se em direto na UERJ, fez mestrado na Universidade de Yale, nos EUA, voltou à UERJ para um doutorado e aos EUA para o pós-doutorado na respeitada Harvard, em 2011.

Assim que entrou na UERJ ingressou no movimento estudantil, na segunda metade da década de 1970, de 76 a 80, pós anos de chumbo, mas um período ainda de perseguição política sob o comando do general Ernesto Geisel. Barroso militou na Construção, organização de esquerda liberal com membros do Partido Comunista Brasileiro, o partidão, que não aderiu à luta armada contra a ditadura militar.

Nesta entrevista, ele trata de temas do ano de 2015, que parece não ter fim, do STF, do sistema eleitoral brasileiro, da posição do Estado na economia, da militância política de ideias contra a ditadura. Defendeu, abertamente, a legalização da maconha como um teste para descriminalização das drogas no Brasil. “Eu legalizaria a maconha”, defende. Não quis comentar as decisões do juiz Sérgio Moro, da Lava Jato, mas lembrou que elas não têm sido reformadas.

Leia e assista abaixo:

Blog – O senhor militou contra a ditadura militar no movimento estudantil?
Luís Roberto Barroso – Já era no [governo] Geisel, um período menos truculento, mas ainda muito repressivo. Nós fazíamos um pouco o movimento de empurrar a história, manter acesa a chama de uma certa consciência política que não havia. Dirigi um jornal universitário, ajudei a refundar o centro acadêmico Luiz Carpenter e fui diretor. Uma curiosidade: um dos meus adversários no movimento estudantil era o Wadih Damous [PT], que hoje é deputado federal e é meu amigo.


Blog – O senhor foi do partido?
Barroso – Nunca fui do partido, acho que, ao longo da minha vida, eu progressivamente migrei para o centro, sobretudo em questões envolvendo presença do Estado. Sou totalmente convertido à livre iniciativa há muitos anos. Acho que o Brasil tinha três grandes problemas e ainda tem dois. O primeiro grande problema, eu diria, é o patrimonialismo. Essa herança ibérica que nós temos, em que Portugal não separava adequadamente a fazenda do Rei da fazenda do Reino, e havia uma certa mistura entre o que era particular e o que era público. O Brasil foi colonizado numa cultura em que o Rei era, de certa forma, sócio dos aventureiros que vinham para fazer fortuna. A segunda característica brasileira, que tem raízes profundas, é um certo oficialismo, as pessoas dependem do Estado, precisam do Estado, querem um Estado. E o Estado gosta desse papel. A terceira vicissitude dessas três disfunções históricas é o autoritarismo. Dessa, nós estamos nos livrando, aos poucos. Nós nos livramos no plano constitucional e de algumas instituições, mas a sociedade brasileira ainda é estratificada, nós ainda somos uma sociedade hierarquizada, tanto nas relações sociais, como nas relações com o Estado. O Estado brasileiro ainda é autoritário no seu direito administrativo. É um Estado que tem dificuldade de ser transparente, de prestar informações, de dar as razões da sua conduta.

Blog – O Estado deve ser menos protagonista?
Barroso – A geração – que era a minha – acreditava no Estado como protagonista. Eu já desembarquei dessa ideia há muito tempo, mas as pessoas relutam em cortar os seus laços com o passado. Eu acho que o capitalismo e a iniciativa privada provaram-se formas melhores de geração de riqueza. De modo que eu acho que ser progressista não é interferir com a inciativa e com o capitalismo. Ser progressista é ajudar a direcionar adequadamente o produto dessa riqueza, a repartição social justa dessa riqueza e ensino fundamental de qualidade para dar o exemplo mais evidente. Mas o que aconteceu? Um país como o Brasil, com essas características, desenvolveu-se com uma economia de forte presença do Estado, onde as grandes empresas eram estatais. A iniciativa privada não era capitalizada. Ao longo da década de 30, 40, foram criadas grandes fábricas de motores, companhia hidrelétrica do São Francisco, companhia Vale do Rio Doce, todas nascidas como empresas estatais. Depois, você tem, na década de 50, a Petrobras, o BNDES. Nós passamos a ser um país em que o Estado tinha uma presença muito forte na economia. O Estado tinha uma presença muito forte em tudo. Eu acho que nós precisamos derrotar esse preconceito contra a iniciativa privada no Brasil.

Blog – É preciso mudar a cultura?
Barroso – (veja vídeo)

Blog – O senhor falou de uma raiz ligada à esquerda que lutava contra a ditadura...
Barroso – Lutava com ideias. 

Blog – Eu queria entender se essa raiz influencia hoje na sua atuação na Corte. Tem um voto que o senhor deu neste ano, da descriminalização da maconha, que o senhor diz que se a pessoa tomar um porre e cair desmaiada na cama pode parecer ruim, mas não é ilícito. O senhor fala a mesma coisa sobre fumar meio maço de cigarro entre o jantar e a hora de dormir e depois avalia que o mesmo vale para um “baseado”.
Barroso – Eu acho que isso não tem a ver com posições de esquerda ou de direita propriamente. Acho que tem a ver com uma atitude diante da vida. Eu sou uma pessoa que procura ter empatia com os outros em geral. Portanto eu sou uma pessoa que, autenticamente, honestamente, defende minorias. Negros, homossexuais... agora dei um voto recente sobre transexuais. Eu tenho uma visão, não quero soar pretensioso, humanista da vida. Tenho uma certa empatia com as pessoas. Sou um observador da cena nacional. Eu sei que você vai querer me perguntar se eu fumava maconha quando era jovem, eu quero te dizer que eu sempre fui mais de um bom copo. E educo os meus filhos em uma cultura crítica em relação às drogas. Portanto, eu não acho que as drogas sejam uma coisa boa. Acho, no entanto, que a repressão às drogas é uma política muito ineficaz e que produziu efeitos inversos. 

Blog – O senhor pode dar um exemplo?
Barroso – Ao longo dos últimos 20, 30 anos, o consumo de cigarro caiu exponencialmente, uma redução de quase a metade. Acho que, até 20 anos atrás, mais de 30% da população adulta fumava, hoje em dia menos de 15% da população adulta fuma. E o cigarro não foi tratado colocando na ilegalidade, enfrentou-se o cigarro com informação, debate esclarecido e cláusulas de advertência. Eu sou uma pessoa muito mobilizada pela mundo das ideias e pela capacidade do convencimento racional. Isso valeu em relação ao cigarro. Nesse mesmo período, o consumo de drogas só fez subir, o que demonstra que a política de repressão, nessa matéria, deu menos certo, do que a política de informação, esclarecimento e cláusulas de advertência. Só esse, Matheus, já é um dado relevante para você repensar essa política. Além disso, no Brasil, ao contrário do Primeiro Mundo, o maior problema em relação às drogas não é o usuário. Não que o usuário seja indiferente, mas esse não é o maior problema brasileiro. 

Blog – E qual o maior problema?
Barroso – O maior problema brasileiro é o poder que o tráfico tem sobre as comunidades carentes, o poder da intimidação e da violência. É também o poder da cooptação. É o poder de impedir que as famílias honestas das comunidades carentes criem seus filhos fora da criminalidade porque o tráfico paga mais do que qualquer atividade formal lícita. Portanto, é um poder da opressão. E o tráfico é poderoso porque a droga é ilícita. Se a droga não fosse ilícita, o tráfico não teria esse poder. Olhando para algum lugar do futuro lá na frente, eu imaginaria você descriminalizar boa parte das drogas como uma política pública que pode ser uma alternativa. Porém, quando você lida com gente, você tem que correr riscos paulatinos. Por isso que eu votei apenas pela descriminalização da maconha. Eu acho que a gente tem que fazer uma experiência com a maconha, que é uma droga que está aí há muito tempo, que as pessoas conhecem, que não torna a pessoa um risco nem para os outros nem para si própria e, consequentemente, experimentar. Eu legalizaria a maconha. E você tem dois modelos hoje em dia. Você tem o modelo uruguaio, de estatizar. E você tem o modelo de alguns estados americanos de tratar isso privadamente com uma intensa regulação, pagando imposto, regulando e vendendo no quiosque.

Blog – E qual é o melhor na sua visão?
Barroso – Eu gosto de fazer uma brincadeira que talvez se a gente optasse pelo modelo estatizante, nós podíamos criar a "DrogaBras” e desmoralizar o produto em pouco tempo. Mas eu verdadeiramente prefiro, hoje, atividades privadas reguladas. A gente está precisando no Brasil de menos Estado e mais sociedade.

Blog – Essa sua visão humana é a responsável pelo discurso que o senhor fez como patrono de uma turma na UERJ que viralizou na internet e nas mídias sociais?
Barroso – Eu sou professor há muitos anos, gosto de estar em sala de aula, de ser patrono, de ser paraninfo. Eu estou ministro, mas eu sou professor, de dizer quais são as opções que eles têm na vida. Na minha aula não se cola. Se frequentar e se esforçar, ninguém é reprovado. Só há um risco de alguém ser reprovado na minha sala de aula: se colar. Porque a cola fará com que vocês sejam espertos e medíocres. E é esse País que eu quero refazer: o país de gente esperta e de gente medíocre. Esse discurso a que você se refere trata de uma frase que era um pouco lugar comum: ‘a vida vem sem manual de instruções’. Eu fiz esse exercício nesse discurso, chamado “A vida e o direito: um breve manual de instruções”. Qual seria o manual de instruções que eu daria se eu fosse escrever um? E aí fiz essas cinco regras. As minhas cinco sugestões eram: nunca forme uma opinião sem ouvir os dois lados; a verdade não tem dono; o modo como a gente fala as coisas faz toda a diferença; seja bom e correto mesmo quando ninguém estiver olhando; e ninguém é bom demais e, sobretudo, ninguém é bom sozinho. Era um discurso despretensioso. E aí eu publiquei, como com frequência eu publico, num site jurídico. Mas esse realmente viralizou. Eu preciso te dizer que poucas coisas me deixaram mais feliz nos últimos tempos porque o meu mundo é um mundo de ideias. 

Blog – Alguma ideia para a política?
Barroso – Eu defendo ideias para o Brasil há muito tempo. Semipresidencialismo é uma ideia que eu defendo, escrevi um longo trabalho sobre isso, e reitero isso vez por outra, e agora recentemente o presidente da OAB, muito finamente me dando crédito, relançou o debate. E eu fico feliz de participar do debate, eu sou um defensor do voto distrital misto há muitos anos. Tudo isso eu defendia antes de virar ministro, como acadêmico. Pensar o Brasil, debater o Brasil é a minha maior motivação.

Blog – O senhor avalia que o sistema brasileiro político precisa mudar?
Barroso – Eu escrevi o meu trabalho em 2006, quando tudo ia bem. Já tinha passado a maior crise de 2005, o mensalão. O presidente já tinha recuperado a sua popularidade. Aí eu propunha que se mudasse o sistema de governo para semipresidencialismo daí a 8 anos, para não afetar nenhum interesse político posto sobre a mesa. E eu disse, na ocasião: a gente conserta o telhado durante a seca, quando o tempo tá bom. Porque, o tipo de hiperpresidencialismo que nós temos no Brasil é condenado a crises irremediáveis ciclicamente. Aliás, todo sistema político, como todo sistema econômico, tem crises cíclicas. A vida é assim. O que você tem que fazer é pensar, na frente, mecanismos de absorção e superação das crises. E o semipresidencialismo é um desses mecanismos. Na verdade, é um modelo presidencialista. Ele conserva a principal característica do presidencialismo que é a eleição direta do Presidente da República. O parlamentarismo tem como característica ou serem monarquias, como Reino Unido e Dinamarca, ou repúblicas com eleição presidencial indireta, como Alemanha e Itália. O modelo semipresidencialista tem como paradigma a França, com um pouco mais de poder ao presidente, e Portugal, um pouco menos de poder ao presidente. Mas, nos dois casos, o presidente é eleito por voto direto. Apenas, ele reparte parte do poder com o Parlamento.

Blog – Qual seria o papel do presidente?
Barroso – Na minha proposta, o presidente teria algumas competências importantes, mas limitadas. Por exemplo, ele tem a competência para nomear os ministros dos tribunais superiores, para nomear os embaixadores e conduzir a política externa, para iniciativa de lei em alguns casos, para indicar o próprio primeiro ministro, mas que dependerá de aprovação pelo Congresso. Aí você tem o presidente como Chefe de Estado, fiador da estabilidade institucional. E você tem o primeiro ministro como chefe de governo e chefe da administração. O primeiro-ministro é quem vai estar no fronte inóspito da negociação política, dos embates políticos, sujeitos a turbulência e, eventualmente, se perder a base de sustentação, pode ser trocado sem nenhum abalo institucional, pois a continuidade institucional é representada pelo presidente. A França, recentemente, teve um abalo econômico relevante, mudou o primeiro-ministro, mudou a orientação política e continua o governo. Portanto, se nós tivéssemos aprovado em 2006, acho que esse seria um bom mecanismo de absorção da crise brasileira atual. Mas trocar o pneu com o carro em movimento pode ser uma alternativa ou não. Aí já não é mais um juízo institucional, é um juízo político que eu não me sinto autorizado a fazer. Mas verdadeiramente acho que nós precisamos fazer alguma coisa. 

Blog – Nós estamos à beira de uma crise institucional?
Barroso – O país não vive uma crise institucional, mas vive uma crise política e uma econômica. As pessoas estão sofrendo, estão perdendo o emprego, o poder aquisitivo está caindo, a inflação está subindo, os empresários não estão investindo. Portanto, a política não pode destruir o país, a gente tem que pensar nas pessoas. Eu estou preocupado com o cidadão. Presidente Dilma, vice-presidente Michel Temer, o senador Aécio… acho que eles tem projetos políticos legítimos, mas eu estou preocupado com as instituições, que ela estejam sólidas e com as pessoas. A gente é para brilhar e não para morrer de fome, como diz o Caetano.

Blog – Se a gente tivesse adotado a ideia do semipresidencialismo nós não estaríamos passando por essa grave crise. O país tem tomado decisões erradas? O senhor está otimista ou pessimista?
Barroso – Se o país está tomando decisões erradas eu não vou responder, porque eu não sou comentarista político. Mas eu sou muito otimista. Acho que o Brasil é um país extraordinário que, na minha vida adulta, só melhorou, e melhorou de uma forma vertiginosa. E não foi só na minha vida adulta. O Brasil é o maior sucesso do século 20. O Brasil começou verdadeiramente em 1808, com a vinda da família real para o Rio de Janeiro fugindo de uma Europa que estava à mercê de Napoleão. Até 1808, os portos eram fechados, o Brasil não podia ter comércio exterior. Portugal proibia que aqui houvesse manufaturas, era proibido que houvesse estradas. Não havia escolas, muito menos faculdades, havia no máximo uma outra escola religiosa de ensino fundamental. Não havia dinheiro, as trocas eram feitas por escambo – 98% da população era de analfabetos e um terço da população era de escravos. Nós estamos em 1808, há 207 anos atrás. Portugal foi o último país da Europa a acabar com a inquisição, o último país da Europa a acabar com o tráfico de escravos e o último país da Europa a acabar com o absolutismo. Portanto, além de termos um quadro melancólico no Brasil, éramos herdeiros de uma tradição atrasada. Pois, em 207 anos, nos tornamos uma das maiores democracias de massa do mundo, com 30 anos de estabilidade institucional. E somos, apesar de todas as turbulências, uma das dez maiores economias do mundo. Somos uma sociedade que, apesar de todos os problemas, é uma sociedade multirracial. Portanto, nós temos que continuar avançando.

Blog – No semipresidencialismo o senhor não teria votado hoje a questão do impeachment que foi trazida à Corte. Como o senhor avalia a decisão?
Barroso – O impeachment é a forma de destituição de presidentes no presidencialismo, porque não existe, como existe no parlamentarismo e no semipresidencialismo, a possibilidade de moção de desconfiança para destituir o primeiro-ministro. O grande problema, e isso está na origem da crise brasileira, é que o presidencialismo não tem mecanismos de remoção do presidente por perda de lastro político, por perda de apoio político. O presidencialismo só tem fundamento para retirada do presidente se nós tivermos o cometimento de um crime de responsabilidade, que é uma coisa difícil de caracterizar. Porque o impeachment, embora ele tenha previsão constitucional e, portanto, ele não seja um golpe, é um abalo. Não é algo natural como a mudança de um primeiro-ministro por aprovação de um voto de desconfiança. O impeachment é um momento de abalo político, que é isso que nós estamos atravessando agora. O país vai passar alguns meses sob turbulência, com o custo que isso tem para a sociedade. Poucas coisas são piores na vida do que a sensação de estar piorando. Há uma certa percepção subjetiva de que as coisas pioraram.

Blog – Como o senhor avaliou a decisão tomada na Corte? Houve influência entre poderes?
Barroso – Eu achei a decisão muito importante e muito boa. A decisão que o Supremo tomou foi: deve valer para o impeachment da presidente Dilma Rousseff as mesmas regras que valeram para o impeachment do presidente Fernando Collor. Isso é uma libertação para o tribunal e é muito bom, esse foi o meu voto, que foi o voto que prevaleceu. Eu acho que, em questões politicamente controvertidas em que existem paixões envolvidas, o que liberta é você seguir a jurisprudência que já existe e os ritos que já foram praticados. Foi exatamente isso que o Supremo fez, determinou a aplicação, rigorosamente, do mesmo rito aplicado pro presidente Collor. É claro que, em todo embate que tem uma dimensão política, a nossa preocupação é puramente institucional, mas é claro que há um embate político subjacente. Duas situações foram afetadas: nós entendemos, por maioria, que num procedimento de impeachment, pela sua gravidade para o país e pela sua repercussão sobre a legitimidade democrática, todos os atos têm que ser transparentes e, portanto, todas as votações têm que ser abertas. Não tem votação fechada. Alguém dirá: mas pode haver pressões. Pode. Pode haver pressão de quem é o alvo do impeachment e pode haver pressão de quem quer o impeachment. A sociedade brasileira, hoje, é uma sociedade aberta, democrática, com movimento social, mídia social e imprensa atuantes. Ninguém é dono do pedaço. Ninguém é dono da opinião pública. E, portanto, é muito melhor você ter pressões, se elas ocorrerem, à luz do dia, do que o que pode ocorrer em votações secretas. O Supremo não disse que nunca pode ter voto fechado na Câmara, previsto no Regimento. Em algumas situações, pode e talvez deva. Mas não nessa que tem a gravidade da destituição de um presidente da República.

Blog – O senhor tem dito que o STF precisa rever sua forma de julgar os processos. O que precisa mudar?
Barroso – O Supremo precisa, como todas as cortes constitucionais do mundo, julgar com qualidade, com visibilidade e na quantidade possível. E, consequentemente, eu defendo aqui internamente que o Supremo não admita mais recursos extraordinários do que possa julgar por ano. Porque, na sistemática atual, esses recursos se acumulam aqui por 1, 2, 4, 3, 5, às vezes até 10 anos, e a gente acaba atravancando a Justiça no Brasil. A minha proposta interna, tenho conversado internamente com os ministros – e não é proposta só minha, mas uma criação coletiva que nós estamos tentando conceber – é um tipo de mecanismo em que tudo que exceder esse número de recursos que a gente possa julgar por ano, transita em julgado. Quer dizer, tudo que o Supremo não selecionar para ter repercussão geral, transita em julgado. Quando um recurso extraordinário, que é o típico recurso que cabe para o Supremo, chega aqui, eu posso fazer uma de três coisas: ou eu acho que aquela matéria é muito importante e merece ser discutida em plenário, e aí proponho repercussão geral. A hipótese 2 é a decisão que veio de baixo, da origem, como a gente diz, está errada porque contraria a jurisprudência do Supremo. Então, eu posso modificá-la, eu sozinho, e alinhar aquela decisão à jurisprudência do Supremo. Ou, a terceira que eu posso fazer, é dizer que a decisão está correta e manter a decisão. Esse terceiro caso corresponde a 95% dos casos. Portanto, a gente só reforma 5% dos recursos. Só que eu tenho que produzir uma decisão em cada um desses casos que chega aqui, para manter a decisão da origem.

Blog – Nesse caso, então, não seria tomada a decisão? Caberia simplesmente…
Barroso
 – É um trabalho hercúleo e desnecessário. Então, aquilo que eu não selecionei para repercussão geral, nem mudei porque estava errado, o processo acaba, transita em julgado, como a gente fala.

Blog – Sem uma manifestação?
Barroso – Sem manifestação. Ou com uma manifestação padrão, “mantenho a decisão pelos seus fundamentos”. Com isso, os processos vão começar a acabar no tempo que um processo tem que acabar num país civilizado. O processo num país civilizado tem que ter a sentença de primeiro grau em seis meses, dez meses. O recurso tem que ser julgado em 1 ano e meio. Acabou. Portanto, o devido processo legal e o acesso à Justiça, eles se realizam em dois graus de jurisdição: o primeiro, que é o juiz sozinho, e o segundo, que é o Tribunal de Justiça nos Estados ou o Tribunal Regional Federal na Justiça Federal. Depois dessas duas decisões, acabou. Se tiver uma situação extraordinária, deve caber recurso. Se não, tem que transitar em julgado. Nós precisamos criar no Brasil a cultura de que o processo é feito para acabar num período entre 6 meses e 2 anos, mais do que isso é um absurdo. E aí chega aqui, mas não é só o recurso extraordinário. Depois que você julga o recurso extraordinário, depois tem agravo regimental, embargos de declaração, embargos de divergência, embargos infringentes… é uma cultura. Se você assistiu ao pedido de extradição do Henrique Pizzolato na Itália, e quantas instâncias se pronunciaram, você já vai identificar de onde nós importamos o nosso sistema processual, que é esse modelo processual italiano que não é voltado nem para a celeridade nem para o resultado. O mundo se americanizou em muitas coisas, algumas boas e algumas ruins, e acho que a gente tem que se tornar mais pragmático em matéria processual também. 

Blog – Hoje, muitos temas relevantes são colocados para julgamento em plenário na quinta-feira anterior ao dia do julgamento. Muitos temas são julgados sem um debate consolidado pela sociedade. É possível resolver isso também?
Barroso – Eu tenho uma proposta. As questões importantes devem ser pautadas com alguns meses de antecedência. A minha proposta em relação à repercussão geral é: reconhecida a repercussão geral, você marca a data do julgamento. No final de cada semestre, você seleciona os processos que vão ter repercussão geral. Então, por exemplo, em junho nós selecionamos 20 processos para ter repercussão geral. A primeira repercussão geral reconhecida em junho vai ser julgada no dia 03 de fevereiro de 2016, o primeiro da pauta de quarta-feira. O processo que recebeu a repercussão geral 2 vai ser julgado no dia 10 de fevereiro de 2016, primeiro processo da quarta-feira. Portanto, você marca o julgamento das coisas verdadeiramente importantes com seis meses de antecedência. Isso resolve muitos problemas. Primeiro, melhora a qualidade do debate porque todo mundo pode se preparar, se preparar significa estudar um pouco a doutrina, fazer um pouco de pesquisa empírica para ver como é aquilo no mundo real, estudar um pouco como é que isso funciona nos outros países do mundo, conversar com algum especialista. Então, você vai chegar informado para o julgamento. Segundo, vai abolir a necessidade do pedido de vista. Porque, as pessoas pedem vista, geralmente, porque não tiveram tempo de se preparar adequadamente para uma questão complexa. Em terceiro lugar, acaba com essa romaria dos pobres dos advogados, a gente faz pautas enormes, só consegue julgar 2, 3, 4, processos por pauta… Então tem advogados que já vieram 10, 12 vezes para esperar o seu julgamento que não aconteceu e fazendo a parte, muitas vezes, gastando um dinheiro que não tem com passagem e estadia. Então, a minha primeira e grande proposta de racionalização do Supremo é: em matéria de repercussão geral, marcar o julgamento com seis meses de antecedência. 

Blog – Alguns analistas avaliam que o juiz Moro é excessivamente duro, e o ministro Teori é excessivamente cuidadoso. Qual avaliação o senhor faz da Lava Jato até aqui?
Barroso – Eu não posso, não quero e, por isso, não devo comentar a Lava Jato nem o papel do juiz Moro, cujas decisões, no geral, não têm sido reformadas. Nem o papel do meu colega Teori Zavascki, que é um juiz de primeira linha. Portanto, eu não vou comentar nem este caso, nem estas pessoas. Mas, eu vou comentar o sistema penal brasileiro que repercute diretamente sobre o que você está interessado. O sistema punitivo brasileiro é um desastre completo. Ele é um sistema feito para pegar pobre. E é muito mais fácil prender um menino por 100 gramas de maconha do que prender um empresário por um golpe de 10 milhões. O sistema foi criado assim. A elite brasileira fez um direito penal que não a colhesse. E o Supremo, em matéria de insignificância por exemplo, em crime de sonegação, como a Fazenda Pública não cobra multas e tributos abaixo de 20 mil, considera-se que não há sonegação se for até 20 mil reais. Então, casos de contrabando, por exemplo, não se condena até 20 mil. Porém, condena-se casos de roubo de chinelo, roubo de chocolate... quer dizer, é uma cultura que discrimina criminalidade de rico e criminalidade de pobre. Há um problema cultural, há um problema legislativo e há um problema jurisprudencial de como os tribunais decidem. Então, nós precisamos mudar o direito penal. Uma dessas mudanças, a meu ver, está em curso. Uma decisão de 2008 passou a impedir a execução das decisões mesmo depois do julgamento em segundo grau, as decisões penais. Isso fez com que todos os advogados criminais se transformassem em advogados que, por dever de ofício, ficam interpondo um recurso atrás do outro, para não deixar o seu cliente cumprir a pena. Nós temos um sistema em que todos os advogados operam para não deixar o processo acabar. Não pode funcionar. É por isso que você leva 10, 12, 15 anos para botar alguém na cadeia, não importa a gravidade do crime. Portanto, eu acho que, como regra geral, nós devemos voltar ao modelo que vigora em toda parte do mundo, que a condenação em segundo grau já permite a execução da sentença. Aliás, em muitos países do primeiro mundo, basta a condenação em primeiro grau. Eu acho que, no Brasil, deve ser em segundo grau por algumas precauções. Mas, num segundo grau em tempo razoável, porque acho que se a parte ou o advogado estiverem trabalhando para procrastinar o julgamento do seu recurso, aí eu acho que ele deve cumprir a pena imediatamente. A gente tem que ter um sistema que funcione. E acho que, no caso de condenação pelo Tribunal do Júri, salvo se o tribunal suspender cautelarmente a decisão do júri, acho que já deve cumprir imediatamente, porque o homicídio é um crime tão grave que o sujeito permanecer convivendo na sociedade, às vezes com a família da vítima por muito tempo, é um acinte, é uma afronta. 

Blog – Você já vislumbra a necessidade de criar uma nova legislação para coibir os delitos cometidos na Lava Jato?
Barroso – Eu não atuo na Lava Jato, então eu nem seria a pessoa certa para responder essa pergunta. Mas, acho que o direito penal tem evoluído sim, agora com a lei de organização criminosa, crime de lavagem… Eu acho que no Mensalão, por exemplo, a legislação penal existente e as tipificações atenderam as necessidades do momento. O que a sociedade tem muitas vezes uma certa queixa, acha que o sistema é leniente. Cumpre um sexto em regime fechado, passa pro semiaberto, cumpre um sexto no semiaberto e passa para o aberto. Como não tem instituições para cumprir em regime aberto, vai para a prisão domiciliar. Então, a sociedade tem uma percepção de que o sistema é muito brando. O sistema brasileiro tem uma dualidade. Nós temos a quarta maior população carcerária do mundo, de modo que você imaginaria que é um país bastante punitivo, e a sociedade tem uma imensa sensação de impunidade. A realidade é que nós punimos muito, mas punimos mal. A sociedade brasileira é afligida por dois tipos de criminalidade hoje no Brasil: a criminalidade violenta, a sociedade tem medo da violência urbana naturalmente; e a corrupção. Acho que essas seriam as duas grandes demandas da sociedade brasileira em matéria de criminalidade. Pois mais de 50% da população carcerária brasileira não está presa nem por uma razão nem pela outra. O número de prisão por homicídio é relativamente baixo, o número de apuração de homicídios é sofrível, nós temos um índice imenso de mais de 50 mil homicídios por ano, com índice de apuração de menos de 10%. Cerca de 20% da população carcerária talvez seja por homicídio. E por corrupção há menos de 0,5% provavelmente. As pessoas estão presas hoje no Brasil por drogas ou por furto, mais de 50% da população carcerária. Nós temos que fazer isso no Supremo, o diagnóstico de que não pode julgar 50 mil processos por ano, porque não tem como funcionar bem. 

Blog – E por que não faz?
Barroso – Depois que você fizer o diagnóstico certo, tem que ter a coragem de dizer para a sociedade que não vai julgar mais porque a gente não pode. É um pouco como equilíbrio fiscal, uma coisa que eu achava que nós já tínhamos aprendido, mas o debate público brasileiro faz parecer que não. Equilíbrio fiscal é uma premissa lógica da vida. Se você gastar mais do que arrecada, você vai, progressivamente, criar um deficit, diminuir a credibilidade da sua moeda, produzir inflação e, pelo menos no médio prazo, a vida de todo mundo vai piorar. Ponto. Não é porque eu quero, não é uma opção filosófica. É um fato da vida. Então, tem que aplicar isso aqui também. O Supremo não pode receber mais processos do que julga num ano. Por quê? Porque se não os processos começam a acumular e você começa a entregar justiça num prazo irrazoável. A gente tem que assumir certos fatos da vida e lidar realisticamente com eles. Ou seja, nós estamos quase virando um país adulto. E, com um pouco mais de igualdade, vamos virar uma República. E aí seremos um país formidável.

Blog – O senhor tem falado muito em reforma política e reforma eleitoral. Recentemente, disse que é um absurdo uma empresa doar, indistintamente, a todos os candidatos ao mesmo cargo. Nós temos um sistema que leva ao “toma lá, dá cá”?
Barroso – (veja vídeo)



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