Antes de discutir o ciclo completo, é preciso desmilitarizar a polícia
19 de outubro de 2015
O interrogatório é muito fácil de
fazer;
Pega o favelado e dá porrada até doer.
O interrogatório é muito fácil de acabar;
Pega o bandido e dá porrada até matar. [1]
Pega o favelado e dá porrada até doer.
O interrogatório é muito fácil de acabar;
Pega o bandido e dá porrada até matar. [1]
Não foi por acaso que a Constituição da República conferiu os poderes de
prevenção (policiamento e patrulhamento ostensivo) à Polícia Militar, à Polícia
Rodoviária Federal e à Guarda Municipal (artigo 144, parágrafos 12º,
5º e 8º da CF), de um lado, e de repressão (investigação criminal) à Polícia
Civil e à Polícia Federal (artigo 144, parágrafos 12º e 5º da CF), de
outra banda. Cuida-se de conquista histórica, que objetiva evitar a hipertrofia
de quaisquer das instituições policiais, servindo como contenção ao arbítrio
estatal.
A outorga da atribuição de investigar crimes comuns à Polícia Judiciária
não assusta, porquanto o delegado de Polícia é o único policial que faz parte
de uma carreira jurídica, como confirmado pelo Plenário do Supremo Tribunal
Federal [2] e pelo legislador no artigo 2º da
Lei 12.830/13. Já quanto aos oficiais da Polícia Militar, ainda que tenham
formação de grau superior, o STF já deixou claro que suas atribuições não são
“sequer assemelhadas às da carreira jurídica” [3]. O Superior Tribunal de Justiça,
de igual forma, sentenciou que a atividade do miliciano “não caracteriza
atividade relacionada a carreiras jurídicas” [4]. A mesma conclusão atinge os
policiais rodoviários federais e os guardas municipais, pois onde há a mesma
razão, aplica-se o mesmo direito.
Não por outra razão a doutrina sublinha que todo policial militar, do
mais moderno soldado ao mais veterano coronel, é considerado um agente da
Autoridade Policial. De igual maneira ocorre com o patrulheiro e o guarda municipal
[5]. Constatação essa que não importa
em qualquer demérito para a importante função desempenhada pelos policiais fardados,
mas apenas esclarece qual a missão de cada um na persecução penal, colocando
cada personagem em seu respectivo lugar [6].
Por isso mesmo, o Supremo Tribunal Federal tem assentado a
incompatibilidade da Polícia Fardada com a tarefa investigativa, que deve ser
presidida pelo delegado de Polícia [7].
Vistas essas premissas jurídicas, não se nega que o sistema de Segurança
Pública brasileiro, tão combalido pela falta de investimentos, pode ser
aperfeiçoado a fim de que consiga maior eficácia na prevenção e repressão à
criminalidade. Tanto que há diversas proposições legislativas que almejam esse
desiderato.
Nesse campo de ideias, o sucateamento do aparato investigativo estatal é
campo fértil para o surgimento de concepções polêmicas e mirabolantes,
escoradas num legislador cada vez mais ávido em satisfazer a opinião pública
com um Direito de emergência. Algumas propostas, por iniciativa e apoio de
parlamentares oriundos da caserna, ignoram a pluralidade de mecanismos de
controle social [8] e reduzem o problema da
criminalidade à Polícia, mais especificamente à investigação criminal. Com essa
visão distorcida, propõe-se que policiais fardados possam investigar civis,
como se essa aberração representasse o remédio para todos os males. Com a lente
enviesada, enxergam num problema a solução.
É nesse contexto que surge a discussão acerca do famigerado ciclo
completo de polícia. Trata-se de modelo no qual as tarefas de prevenção de
delitos e investigação criminal se reúnem na mesma Polícia. Isto é, a própria
instituição policial responsável pela captura do sujeito em flagrante delito
poderia formalizar o termo circunstanciado, auto de prisão ou apreensão em
flagrante e toda a investigação ulterior, realizando o controle de legalidade da
ação policial e coibindo eventuais abusos.
Nota-se que o ciclo completo de polícia não é inaceitável por si só. O
que é inconcebível é a militarização desse arquétipo, criando uma Polícia
Militar com superpoderes, a exemplo do que se pretende com a Proposta de Emenda
à Constituição 431/2009.
A monstruosidade de uma investigação criminal presidida por miliciano
salta aos olhos. Agride o ordenamento jurídico e o bom senso imaginar um
policial fardado, integrante de carreira não jurídica, lavrando autos de prisão
em flagrante, fazendo análises sobre tipificação material, concurso de crimes,
nexo de causalidade, tentativa qualificada, crime impossível, justificantes e
dirimentes, conflito aparente de leis penais, imunidades, erro de tipo, entre
outras.
Não podemos olvidar que a prisão em flagrante constitui um instrumento
constitucional de imediata proteção aos direitos fundamentais. A restrição de
um direito fundamental (liberdade de locomoção) só se justifica pela proteção
do bem jurídico contido no tipo penal violado, sendo que apenas uma autoridade
oriunda do meio jurídico pode ser capaz analisar as inúmeras circunstâncias que
influenciam na caracterização de um crime, observando-se os direitos e
garantias fundamentais do suspeito.[9]
Justamente por isso, entendemos que não se deve sequer discutir a
proposta de ciclo completo antes de se extirpar o militarismo da Segurança
Pública brasileira. É dizer: a desmilitarização precede o debate. Esse alerta
vem sendo feito por juristas[10] e estudiosos das ciências
sociais[11], e até mesmo por militares.[12]
Nesse ponto, irretocável a lição do Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais (IBCCRIM):
Tristemente pouca,
nossa memória. Resultado de uma grande mobilização civil pela democratização do
país, a Constituição de 1988 adverte-nos quão perigoso é atribuir a militares
investigações estranhas ao seu universo próprio. (...) Ora, uma instituição
militar não é estruturada a partir da formação jurídica de seus quadros. Não é
voltada à cultura do direito enquanto um valor em si mesmo. (...) Por trás de
todas essas propostas esdrúxulas, o movimento subjacente é nítido. Trata-se de
militarizar a própria ideia de segurança pública, reclamando-a da cidadania que
é seu espaço próprio para confiná-la nos quartéis, batalhões e dependências
tais.[13]
Noutro editorial, prossegue o IBCCRIM:
Já é passada a hora
de o Estado restituir à sociedade a polícia que a última ditadura lhe subtraiu.
Caso contrário, a presidência da Polícia Judiciária, outrora envergando a toga,
estará prestes a apresentar-se de farda à sociedade, a dano da boa
administração da justiça criminal que há tempos se aguarda.[14]
Na mesma linha estão o Conselho de Direitos Humanos da Organização das
Nações Unidas[15], a Corte Interamericana de
Direitos Humanos,[16] a Anistia Internacional,[17] a Comissão Nacional da Verdade[18] e a Secretaria Nacional de
Direitos Humanos[19]. Ora, se a sociedade moderna
defende que sequer o policiamento ostensivo deve ser feito por instituição
militar, com maior razão não pode prevalecer um regime castrense de
investigação criminal.
Fácil perceber que o discurso que trata o ciclo completo de polícia como
uma panaceia para os problemas da Segurança Pública não consegue camuflar
ambições corporativistas dos policiais fardados:
O debate em prol do
ciclo está sendo capitaneado pelos oficiais da PM, suas associações de classe e
os seus deputados eleitos. É uma luta dos oficiais da PM travestida de algo que
irá beneficiar a sociedade, mas que na realidade irá dar ainda mais poder para
o oficialato das corporações. (...) As PMs não possuem prática, não têm
formação e não têm histórico de investigação de crimes. Via de regra, quando
fazem isso, o fazem adotando a violência, a ameaça e a humilhação das pessoas.
Para as PMs ter ciclo completo de polícia, elas precisariam mudar radicalmente
a sua formação e a cultura organizacional que possuem hoje.[20]
Vale destacar que mudança dessa natureza significaria flagrante violação
ao princípio da vedação do retrocesso[21]. Como temos
sustentado, a sanha utilitarista não pode servir de pretexto para
que policiais fardados passem a lavrar termo circunstanciado no capô da
viatura, conduzir civis para destacamentos militares, ou prender pessoas em
flagrante, num retrocesso que jogaria por terra garantias que não foram
conquistadas do dia para a noite. Ao amparar-se no enganoso discurso de combate
à criminalidade, a Polícia Fardada, pretende promover sua hipertrofia à custa
de conquistas históricas. Afinal, é um direito fundamental do cidadão ser
investigado tão somente pelo delegado natural.
O alerta do Supremo Tribunal Federal vem a calhar:
É preciso advertir
esses setores marginais que atuam criminosamente na periferia das corporações
policiais que ninguém, absolutamente ninguém — inclusive a Polícia Militar
— está acima das leis.[22]
É esse, aliás, o espírito de um Estado Democrático de Direito, onde
todos devem respeito à lei, não podendo se admitir que a justiça seja feita a
qualquer custo, ao arrepio dos direitos e garantias individuais. Sendo assim,
toda instituição policial precisa se pautar por essa premissa, afinal, a
Segurança Pública é um bem jurídico basicamente instrumental, o que significa
que ela não constitui um fim em si mesma, mas um meio através do qual vários
outros bens jurídicos são assegurados. Sempre que a Segurança Pública ou outras
expressões similares (por exemplo Segurança Nacional, Ordem Pública etc.)
são colocadas em primeiro plano ou como fins e não instrumentos para assegurar
outros bens jurídicos, descamba-se facilmente para o autoritarismo e a violação
dos direitos fundamentais na conformação de um chamado “Estado
Policial”. Nesse sentido:
Quando lemos ou
ouvimos falar de segurança, pensamos imediata e erroneamente, em coação, em
restrição de direitos, de liberdades e garantias. São poucos os que pensam na
segurança como um direito garantístico do exercício dos demais direitos,
liberdades e garantias, i. e., como direito garantia. (...). A segurança como
bem jurídico coletivo ou supra – individual não pode ser vista em uma
perspectiva limitativa dos demais direitos fundamentais, mas, tão só e em uma
visão humanista e humanizante, como garantia da liberdade física e psicológica
para usufruto pleno dos demais direitos fundamentais. [23]
Parece-nos que essa proposta de ciclo completo de polícia, nos moldes
propostos pela Polícia Militar, representaria, de fato, um enorme retrocesso
para o país, que se distanciaria ainda mais de um Estado que zela pelos
direitos e garantias individuais, caminhando na direção contrária dos países
mais desenvolvidos. Deveras, há muitas falhas na nossa Segurança Pública e a
sensação de insegurança na sociedade é cada vez maior. Contudo, para que
tenhamos uma mudança nesse cenário, é preciso que o tema seja discutido de
maneira séria, sem qualquer tipo de corporativismo. Mais do que isso. É preciso
investimento nas instituições policiais, com melhores salários e condições de
trabalho.
A título de inspiração, encerramos o trabalho com o conselho de Cioran:
Amemos nossas
grandes alegrias e nossos grandes desesperos, mas odiemos mortalmente a
inércia, a dúvida e a passividade; odiemos também tudo o que faz diminuir o
ardor apaixonado da alma, como também tudo o que impeça nosso absurdo impulso
na direção do mundo. [24]
1 Música do curso de formação do Batalhão de Operações Policiais Especiais
da Polícia Militar do Rio de Janeiro, entoado em várias outras instituições
militares.
2 STF, Tribunal Pleno, ADI 3441, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 09/03/2007;
STF, Tribunal Pleno, ADI 2427, Rel. Min. Eros Grau, DJ 30/08/2006; STF,
Tribunal Pleno, ADI 3460, Rel. Min. Ayres Brito, DJ 31/08/2006.
5 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 827; TORNAGHI, Hélio. Instituições
de Processo Penal. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 406; SANTOS, Célio
Jacinto dos. In: DEZAN, Sandro Lúcio; PEREIRA, Eliomar da Silva (Org.).
Investigação criminal. Curitiba: Juruá, 2013, p. 64.
6 ROSA, Alexandre Morais da; KHALED JUNIOR, Salah H.. Polícia Militar não
pode lavrar Termo Circunstanciado: cada um no seu quadrado. Justificando.com.
07/01/2014.
7 STF, Tribunal Pleno, ADI 2.427, Rel. Min. Eros Grau, DJ 30/08/2006; STF,
Tribunal Pleno, ADI 3441, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 09/03/2007.
8 PENTEADO FILHO, Nestor Sampaio. Manual esquemático de criminologia. São
Paulo: Saraiva, 2012, p. 21.
9 Para um melhor estudo sobre o tema, indicamos o nosso SANNINI NETO,
Francisco Sannini. Inquérito Policial e Prisões Provisórias. São Paulo: Ideias
e Letras, 2014.
10VIANNA, Túlio.
Desmilitarizar e unificar a polícia. Revista Fórum. jan. 2013. Disponível em:
<
http://www.revistaforum.com.br/blog/2013/01/desmilitarizar-e-unificar-a-policia>
11 MOURÃO, Janne Calhau. Só nos resta a escolha de Sofia? In: Tortura,
Brasília, Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 2010, p.
215-216; MANSO, Bruno Paes. O homem x. Uma reportagem sobre a alma do assassino
em São Paulo. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 220-221/249.
12 SOUZA, Adilson Paes de. A educação em direitos humanos na Polícia
Militar. 2012. 156 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2012.
13 Advertências à militarização da ideia de segurança pública. Editorial do
Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. n. 206, jan. 2010.
Disponível em:
14 "Ciclo completo de Polícia": ou indevida investigação legal.
Editorial do Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, n. 199,
jun. 2009. Disponível em:
16 Caso Escher e Outros vs Brasil, Sentença de 06/07/2009; Caso Castillo
Petruzzi e Outros vs Perú, Sentença de 30/05/1999.
19 Resolução 8/12, que busca, dentre outras coisas, coibir a investigação
de crimes comuns pelo Serviço Reservado da Polícia Militar (P2).
20ALCADIPANI, Rafael.
A farsa do debate do ciclo completo de polícia In: Estadão. Out. 2015.
Disponível em:
21 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 433 e ss.
23 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Teoria
Geral do Direito Policial. 2ª. ed. Coimbra: Almedina, 2009, p. 94 – 95.
Francisco Sannini Neto é delegado de polícia, mestrando em Direitos
Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público. É
professor da Graduação e da Pós-graduação da UNISAL/Lorena.
Henrique Hoffmann Monteiro de
Castro é delegado de Polícia Civil do Paraná, especialista em
Direito Penal e Processual Penal pela UGF e em Segurança Pública pela Uniesp.
Também é professor convidado da Escola Nacional de Polícia Judiciária, da
Escola Superior de Polícia Civil do Paraná, da Escola da Magistratura do Paraná
e da Escola do Ministério Público do Paraná, e professor-coordenador do Curso
CEI e da pós-graduação em Ciências Criminais da Facnopar.
Revista Consultor Jurídico, 19 de outubro de
2015, 8h31
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