sábado, 23 de junho de 2012

REVELAÇÕES CHOCANTES

Memórias da barbárie

Autor(es): » EDSON LUIZ
Correio Braziliense - 23/06/2012
Psicanalista responsável por atender vítimas da violência da ditadura relata as marcas das agressões na vida dos sobreviventes
Os olhos do médico psicanalista Ronaldo Mendes de Oliveira Castro ficam distantes quando ele se lembra da jovem que viu em 17 de junho de 1970, na área psiquiátrica do Hospital de Base, em Brasília. Era Maria Regina Peixoto Pereira, então com 20 anos, que tinha sido torturada por agentes do regime militar. Não havia ferimentos, já que as agressões foram orientadas por um médico, mas a mulher não falava, não andava e chorava copiosamente. A vítima das agressões foi a segunda pessoa atendida por Ronaldo. Antes, ele já consultara um homem, agredido no mesmo ano. Por ter relatado a tortura a seus superiores, o médico foi demitido e afastado do serviço público sob a alegação de que teria falado mal da instituição em que trabalhava.

Hoje, com 79 anos, e 53 de profissão, o psicanalista lembra perfeitamente do dia em que foi chamado ao 8º andar do hospital, um abaixo de onde trabalhava. Ao chegar no quarto em que estava Maria Regina, havia um agente do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) guardando a porta que tentou entrar com ele, o que não foi permitido. "Na cama estava uma mocinha da UnB (Universidade de Brasília) que não falava absolutamente nada, ficava olhando para mim com os olhos arregalados e correndo lágrimas e em pânico", conta o médico, revelando que um neurologista chegou a examiná-la para analisa possíveis sequelas graves.
Segundo Ronaldo Castro, a jovem ficou pelo menos uma semana sem falar, até que um dia ela o reconheceu por ter sido ele o profissional que fez o seu exame de admissão no Banco do Brasil, onde o médico também trabalhava. "Perguntei a ela sobre suas irmãs, que eram secretárias do diretor do hospital e do arcebispo de Brasília. Foi aí que ela passou a confiar, mas falava entrecortado e com um tom de voz muito fraco", relembra o psicanalista. "Ela disse que estava em uma missa na Catedral durante um congresso eucarístico e os estudantes da UnB fizeram uma lista dos colegas desaparecidos que foi entregue aos bispos. Mas eles não sabiam que tinha pessoal do Dops infiltrado que os prendeu, assim como a outras pessoas", conta Ronaldo.
Durante as consultas, a estudante contou que fora vítima de torturada psicológica. "Ela me disse que tinha médicos orientando (as agressões) para não deixar vestígios. Fiquei sem saber o que fazer", observa Ronaldo. Ele ouviu da presa que ela fora vítima de choques elétricos em vários lugares para que dissesse quais eram os colegas contrários ao golpe. "Ela não dizia e cada vez torturavam mais, ao ponto de chegar naquele estado. Me chamaram com medo de que ela morresse. Já não falava mais, ficou em estado de pânico, só olhava e chorava".
Mensagem a familiares
Meses antes, o psicanalista havia passado por experiência semelhante. Ele foi chamado por uma mulher para atender seu marido, que estava preso no Batalhão da Guarda Presidencial (BGP). O homem — cujo nome não revela — foi segurança do ex-primeiro-ministro Francisco Brochado da Rocha (que substituiu Tancredo Neves por quatro meses). "Tinha um tenente que facilitou a entrada no BGP. Fui para uma sala onde haviam de 30 a 40 colchões que eram para presos", relembra o psicanalista. Quando ele apareceu na porta, vários homens surgiram pedindo que Ronaldo avisasse suas famílias de que os detidos estavam vivos.
O médico foi levado para o local onde estava o preso e diagnosticou pneumonia. "O preso me contou que era obrigado a tomar banho gelado nu, durante várias horas". O detido deixou o BGP e foi para o Uruguai, pouco depois. Antes de deixar o local, Ronaldo ainda presenciou uma cena que nunca esqueceu. "Havia uma pessoa esquálida, descalça e vestida com um macacão. Ao seu redor, dezenas de policiais riam. Era Francisco Julião, um dos líderes da Liga Camponesa", relata o psicanalista.

Quatro perguntas para
Ronaldo Castro,
psicanalista

Por que o senhor foi demitido do serviço público?Depois que a estudante recebeu alta, eu disse em um parecer confidencial ao diretor que era uma pessoa séria, falando que se tratava de tortura. Antes disso, havíamos feito uma reunião, que foi gravada, reclamando da situação do hospital e os jornais diziam que foi pelas críticas ao governo e à Secretaria de Saúde.
O motivo seria por ter relatado a tortura?Não tinha nada contra mim. Só soube, 15 anos depois, que os motivos poderiam ser esses, quando um colega ligou afirmando que o livro (Brasil nunca mais), relatava meu parecer sobre a jovem torturada.
E como o senhor era visto depois da demissão?
Quando voltei ao hospital, dois dias depois, para pegar meus pertences, me dei conta de que virei marginal. Colegas entravam em salas quando me viam. É ruim te ver com pessoa que foi cassada.
Por que o senhor quis relatar a tortura?Uma coisa é ter sigilo (médico). Outra coisa é você pactuar com ela (tortura). Mesmo não tendo tido espancamentos, o traumatismo psicológico era evidente.

Para saber mais

Instrumento de terror
Os choques elétricos eram o mecanismo de tortura usado para evitar marcas. Eram aplicados nas partes mais sensíveis do preso. Um dos polos era amarrado às vítimas, enquanto o outro na tomada. Conforme relatos de presos políticos, o meio usado causava convulsões e, muitas vezes, o preso mordia a língua com tanta força que provocava ferimentos profundos. Quando aplicado na cabeça, o choque causava micro-hemorragias no cérebro, que poderiam acabar em distúrbios na memória ou até amnésia definitiva.

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