quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Mortes obscuras, gente sem chão: a barbárie instalada (com vídeo de moradora denunciando o desaparecimento de corpos)



Será que alguém é ingênuo o suficiente para acreditar que isso não terminou em mortes? (Foto: Reuters)

Mortes obscuras, gente sem chão: a barbárie instalada

Por Ana Helena Tavares(*)
“A luta continua aqui! A queda de braço entre a lei, o povo, e um homem que pode derrubar metade da República.” O homem é o megaespeculador Naji Nahas – e a bolsa de valores do RJ ele já derrubou – o local é São José dos Campos e quem relata é quem gravou lá o vídeo acima (ele gravou também outros, clique aqui e confira mais um). “Todos os agentes legais cabíveis sabem exatamente o que acontece”, garante Pedro Rios Leão, um jovem que, como eu, acredita num mundo bem diferente deste e resolveu ir até Pinheirinho ver de perto a realidade contra a qual lutamos.
“As casas de Pinheirinho estão no chão. Não existe mais democracia no Brasil. Pena da menina que aos 22 anos foi presa e torturada por um mundo melhor. Afinal porque mesmo com a Polícia Federal, acompanhada de uma juíza, sendo recebida a tiros pela PM (vide vídeo), na frente de uma Igreja. Mesmo com um assessor da presidência baleado, um senador da República, um presidente de partido, e um deputado federal mantidos em cárcere privado. Por que, nesse cenário, o ministro Gilberto Carvalho (que definiu a ação da PM paulista como “praça de guerra”) diz que o ministério das cidades vai realocar essas pessoas? E as denúncias de assassinato, sequestro e ocultação de cadáver? O Governador Geraldo Alckmin quebrou o pacto federativo para promover uma chacina! É mais importante derrubar a casa dessas pessoas do que investigar? Quem preside esse País? A Dilma? Eu acho que somos todos propriedade de algumas empresas e bancos, e que no momento em que eles quiserem tirar a nossa pele para fazer sapato eles fazem. Um brinde à vitória do Imperador Nahas!!!”, desabafa Pedro.
Segundo ele, “casas foram saqueadas e pessoas foram assassinadas, inclusive depois da ocupação.” O sequestro e ocultamento de corpos, denunciado no vídeo em destaque, ocorreu “na frente de todo mundo”, conta. “Incluindo duas crianças, uma de quatro anos e outra de meses.” A denúncia é gravíssima, mas ele assegura: “Sobre tudo isso não existe nenhuma dúvida. E eu me ponho como fiador dessas provas. Prefiro correr o risco do que deixar isso acontecer calado.”
Há outros fiadores. O jornalista Pedro Nogueira escreveu desesperado relato na revista Caros Amigos, onde garante: “Gente morreu, viu? A PM, o Estado, em conluio com os hospitais da cidade, estão fazendo agora uma operação para desaparecer com os corpos de pelo menos quatro pessoas. Militantes se agonizam, se agilizam, se juntam na cidade para investigar o que aconteceu, já que não se pode mais contar com a imprensa e com o governo. Existe uma guerra não-declarada e o principal mérito dos capangas do Estado é fingir que ela não existe, é contar que seremos sempre uma pacífica massa de revoltados.” (aqui a íntegra)
Até agora, nenhum corpo apareceu. Essa é uma conta que não fecha e exige apuração rigorosa pelos órgãos competentes. Um especialista da ONU declarou que houve “violação drástica dos direitos humanos” (vide BBC) e lideranças políticas já se manifestaram dizendo que levarão o caso à Corte Internacional de Direitos Humanos da OEA. Embora não tenha sido autorizado a falar em nome da instituição, o advogado e presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB de São José dos Campos, Aristeu César Pinto Neto, chegou a afirmar na segunda-feira que houve mortos na operação de reintegração de posse do terreno conhecido como Pinheirinho, ocorrida no domingo, 22 de Janeiro. Deu até número exato: sete (vide). Na terça, porém, ele desmentiu. Coisa mais suspeita!
Quem cruza todos os dados, incluindo imagens, vídeos e relatos só pode concluir que houve, sim, mortos. Há até um áudio em que uma moradora despejada diz que viu “o inferno no hospital, pessoas baleadas, esfaqueadas, gritando de dor”. Ela chega a falar sobre uma criança, possivelmente falecida, e que “a junta médica se reuniu para abafar o caso” (clique aqui para ouvir).
Enquanto o hospital municipal de São José, a PM, o governo de SP e a mídia nativa negam que tenha havido qualquer morte, o jornal britânico The Guardian noticiou que “houve o relato de pelo menos 7 mortes, incluindo um bebê, embora nada tenha sido confirmado oficialmente” (leia em inglês). É preciso que se diga que muitos jornalistas têm sido impedidos de entrar no local – e houve até repórter que levou dois tiros (vide), mas, se até a Al Jazeera conseguiu entrar (clique aqui para assistir, em inglês, à reportagem da TV árabe), a Globo, se quisesse, faria uma cobertura completa.
Como exceções à regra, dentre os que trabalham para a mídia reacionária, há dois jornalistas que cumpriram (e de costume cumprem) um papel digno de nota. Ricardo Boechat deu um “puxão de orelha” no governador de SP Geraldo Alckmin em plena Rádio Band News: ‎”Governador Geraldo Alckmin ! Não adianta ir pra missa todo semana rezar, falar com Deus, ler a Bíblia e ser na prática no mundo dos homens, alguém que faz isso com o semelhante. Procure na Bíblia que o senhor lê a passagem que lhe dá cobertura moral e ética pra fazer o que o senhor fez.” (ouça aqui)
E Paulo Moreira Leite denunciou em sua coluna na revista Época: “A maioria dos antigos moradores do Pinheirinho, expulsos de suas casas a partir das 6h do domingo, não teve tempo nem sequer para pegar os próprios documentos (vide vídeo com as demolições). Sem casa, sem documentos, muitos têm apenas uma muda de roupas. E pulseirinhas coloridas, que identificam quem pode entrar nos abrigos da prefeitura. Na escola Dom Pedro, a cor é azul.”
Azul em inglês significa tristeza. Mas tristeza não define essa situação. Isso é inominável. Como nos calarmos quando sabemos que um homem como Nahas, acusado de vários crimes, dentre eles o de ter grilado as terras em disputa (vide vídeo), está sendo beneficiado em detrimento de gente como a auxiliar de limpeza Marinei de Sousa Rodigues, 42 anos, que deu o desolador depoimento: “A única coisa que quero é tirar minhas coisas da casa, porque lá é onde estão o meu suor e a minha vida. Comprei fiado na loja de material de construção para poder levantar a minha casa com a ajuda do meu marido. Deixei de comprar carne para comprar saco de cimento. Por isso, se for para deixar a casa pra sempre, quero tirar tudo o que eu puder. Quero tirar, porta, janela, tudo! E se não puder eu vou botar fogo na minha casa, porque prefiro fazer isso a ver ela no chão”
Gente como Marinei está tendo que se amontoar em uma igreja, de onde em breve terá que sair, porque o padre que os protegeu diz estar sendo pressionado para tirá-los de lá (vide). E para onde vai essa gente, meu Deus? Como reparar a dignidade desses seres humanos?
O ministro Gilberto de Carvalho, da Secretaria de Habitação do Ministério das Cidades, deu a seguinte declaração: “Nós seguiremos dialogando, não queremos conflito com o governo de São Paulo, respeitamos a autonomia, seguiremos no diálogo. Para nós, o que está em jogo não é a posição desse ou daquele, mas o bem daquele povo, é se buscar uma saída para aquele povo que não pode ficar nessa situação”.
Até militantes tucanos já demonstraram revolta. Uma pessoa, que nunca se acanhou em se definir publicamente como “simpatizante do PSDB”, postou em seu perfil no Facebook o seguinte desabafo: “Ao impedir, pelo uso da força, que pessoas tenham direito a uma casa para morar, condenando-as a vagar sem rumo, sem seus bens adquiridos com tanto sacrifício, feridos, amedrontados e desesperados, o governador de São Paulo está torturando essas pessoas, porque a tortura geralmente é feita para destruir a dignidade do ser humano. Que dignidade pode ter uma pessoa que não tem uma casa para morar? Nesse caso, Alckimin se iguala aos carniceiros que governaram esse país durante a Ditadura Militar. Será que foi para isso que lutamos tanto, pela Democracia? Isso é crime contra a Humanidade e deveria ser punido com Impeachment e com cadeia.”
A pergunta da militante tucana – “Será que foi para isso que lutamos tanto, pela Democracia?” – bate fundo. Nasci em 26/12/1984. Na capa de um jornal da data, havia uma foto do Dr. Ulysses. Por muito tempo, acreditei que eu havia sido presenteada, nascendo junto com o renascimento de um país democrático. Cenas como as de Pinheirinho destroem minha ilusão. Ao velho timoneiro, que descansa no fundo do mar, já não posso reclamar pela fragilidade do presente. Na segunda-feira, 23 de Janeiro de 2012, dia seguinte ao domingo da barbárie, a capa do mesmo jornal deveria trazer, mas não trazia a foto de Geraldo Alckmin. É compreensível. Ulysses falava na volta da democracia no Brasil. Alckmin precisaria falar na volta da ditadura em São Paulo.
*Ana Helena Tavares é editora do site “Quem tem medo da democracia?”

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