domingo, 2 de novembro de 2025
BASTA DE FAZER POLÍTICA COM SANGUE
Basta de fazer política com sangue
Em Gaza ou na Penha, a dor de uma só mãe é a dor de todas
Jandira Feghali
Jandira Feghali
1 nov 2025 - 05h00
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Tomaz Silva/Agência BrasilBasta de fazer política com sangue
Em junho, escrevi um artigo para a Carta Capital que intitulei “Todas as Mães Pensam em Gaza”. Naquele momento, tentava imaginar a dor das mulheres palestinas, destinadas a ver seus filhos morrerem em meio às bombas e aos tiros israelenses. Nesta quinta-feira, na Penha, Zona Norte do Rio de Janeiro, esta dor se materializou, desgraçadamente, na minha frente no choro incontido de dezenas de mulheres cariocas, a quem foi negado, no mínimo, o direito de ver seus filhos presos, e não mortos, meros números da maior chacina deste século no Brasil.
Em Gaza ou na Penha, a dor de uma só mãe é a dor de todas. E esta dor me atravessou profundamente ao ouvir os relatos do pesadelo sem fim que estas mulheres estão vivendo desde terça-feira, quando 2,5 mil policiais entraram nos complexos da Penha e do Alemão e mataram ao menos 121 pessoas, sob o pretexto de prender o traficante Doca e de livrar o território do crime. O bandido continua à solta e as comunidades, aprisionadas pelo medo.
Mas, para o governador do Rio, Cláudio Castro, a “operação” foi um sucesso, à exceção dos quatro policiais que ele enviou para a morte – um deles tinha apenas 40 dias na corporação. Castro empilhou corpos para montar um palanque eleitoral e tentar mudar a pauta da política, que, claramente, colocava a extrema direita na defensiva nos últimos meses.
Frieza ideológica
Ao dizer que as únicas quatro vítimas da chacina foram os policiais, o governador infligiu uma dor extra às mães do Alemão e da Penha. Pude ver, ao lado de colegas parlamentares e de duas ministras de Estado, como estas mulheres vêm sendo revitimizadas desde então.
Primeiro, as ouvimos na sede da Central Única das Favelas (CUFA); depois, na frente do Instituto Médico Legal (IML). Histórias que nenhuma mãe e nenhum pai gostariam de ouvir. “Nenhuma mãe cria o filho para isto”, repetia uma mulher na unidade do Detran, ao lado do IML, que passou a servir de local de atendimento para os familiares dos mortos, tamanha a quantidade de corpos.
Uma outra não conseguia autorização para ver o corpo decapitado do filho. Uma terceira contava como dois irmãos foram encontrados abraçados na mata, mortos com tiros na nuca. E eu, que sou mãe também, fiquei estarrecida com a frieza ideológica da subsecretária de Polícia, Andréa Menezes, responsável pelas perícias no IML, insensível à dor daquelas mulheres, de quem parecia querer distância. Chegou a dizer que nunca viverá uma situação dessas, pois sabe “criar bem” os filhos. Inominável.
Jandira foto pablo porciuncula afp
Moradores da Penha choram seus mortos (Foto: Pablo Porciúncula/AFP)
Infelizmente, como esta senhora do IML, parte da população do Rio, como de todo o país, maltratada pela recorrente ausência de políticas estaduais sérias de segurança pública, também acredita na velha falácia do “bandido bom é bandido morto”. Para estas pessoas, ser preto e morar numa favela são crimes hediondos; o fato de não haver pena de morte no Brasil é mero detalhe (e o racismo se esconde nos detalhes).
Objetivos eleitoreiros
Cláudio Castro também pensa assim, mas seu papel é ainda mais venenoso: ele transforma operações policiais em espetáculos de assassinato em busca de votos. Nessa repetição de justiçamentos deliberados, que ele chama de “combate ao crime”, o governador autorizou 890 mortes em chacinas policiais em cinco anos de governo, segundo o Instituto Fogo Cruzado.
Mas há outro detalhe ardiloso nas mentiras que Castro passou a contar sobre o Rio estar “sozinho na luta contra o crime”, numa tentativa de jogar a culpa de seus crimes no governo federal. O uso planejado da palavra “narcoterrorismo” surgiu em seus discursos e de outras autoridades estaduais. Logo em seguida, foi emulado nas redes bolsonaristas e ecoadas por parte da imprensa corporativa.
Enquanto estávamos na Penha nos solidarizando com os familiares das vítimas, governadores de direita, todos de olho em prejudicar o governo Lula com objetivos eleitoreiros, vieram prestar solidariedade a Castro em seu palácio. Todos repetiram a palavra “narcoterrorismo”.
Após meses de revezes, o campo bolsonarista tenta se reorganizar em torno do discurso do medo. Formaram um “consórcio da paz”, que celebra a morte, e se articulam para pautar um projeto de lei que equipara facções a grupos terroristas – como uma forma de possibilitar uma intervenção imperialista de “guerra ao terror” dos americanos, perigosamente voltada para a América Latina no desgoverno Trump.
Com isso, miram três alvos simultâneos: atrapalhar a retomada do bom relacionamento entre Brasil e EUA (minada pelas fake news bolsonaristas); forçar uma interferência descabida em nossa soberania (não podemos esquecer o pedido de Flavio Bolsonaro para que os EUA bombardeassem o Rio); e encaixar uma pauta populista e extremista para as eleições do próximo ano.
Truculência e espetáculo
É preciso desmontar as mentiras golpistas da extrema-direita, que tanto mal têm feito ao país nos últimos anos. E dizer à população que há, sim, alternativa para derrotar o crime organizado, e ela já vem sendo aplicada pelo governo federal, de forma integrada entre Polícia Federal, Ministério Público, Receita Federal e outros órgãos públicos, como na Operação Carbono Oculto, que desarticulou o esquema financeiro do PCC no setor de combustíveis sem dar um tiro.
A PEC da Segurança, proposta pelo governo Lula, articula a coordenação nacional no combate ao crime organizado. Mas Castro e seus governadores aliados do “consórcio da paz” não querem saber disso por motivos, mais uma vez, eleitoreiros e temerosos da descoberta de ligações econômicas e políticas com o crime.
Está provado que inteligência e planejamento são mais eficazes que truculência e espetáculo. Fazem justiça, não justiçamento. E justiça é o mínimo que devemos às mães do Alemão e da Penha que tiveram seus filhos, criminosos ou não, mortos num tribunal de exceção. Vamos combater, de fato, o crime e retirá-lo do comando dos territórios do nosso estado. Não existe pena de morte no Brasil. Basta de fazer política com sangue.
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