sábado, 19 de maio de 2018

A ESCOLHA DESTA GERAÇÃO


A escolha desta geração

 AUMENTAR LETRA DIMINUIR LETRA

Sertão do Nordeste. Foto: Wikicommons/Flickr/Maria Hsu
Sertão do Nordeste. Foto: Wikicommons/Flickr/Maria Hsu
Em artigo publicado na imprensa brasileira, o diretor-geral da FAO, José Graziano da Silva, aponta que nos últimos 13 anos, o Brasil criou um generoso guarda-chuva de programas sociais, responsáveis por reduzir a pobreza e tirar o país do mapa da fome.
Agora, segundo o dirigente, cortes de recursos ameaçam excluir os pobres do orçamento do Estado e, com isso, trazer retrocessos. Para Graziano, nação brasileira vive o desafio de reencontrar o desenvolvimento e acreditar na democracia como mediadora dos conflitos.
Por José Graziano da Silva, diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO)*
Nos registros de setenta e cinco anos de existência da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) não existe precedente de uma nação com demografia da ordem de 200 milhões de habitantes que tenha conseguido erradicar a fome em apenas uma década. O caso único na história é o do Brasil.
Essa singularidade encerra mais que um trunfo. Ela se oferece como um leme ecumênico, capaz de aglutinar o consenso mínimo necessário a uma nação que necessita urgentemente se reencontrar com o seu desenvolvimento e acreditar na democracia como mediadora dos conflitos inerentes a esse passo da história.
O legado da erradicação da fome coloca a régua num ponto do qual uma sociedade não pode retroceder sob pena de se desintegrar moralmente. Uma recaída à pobreza extrema encerra o risco de devolver o país ao Mapa da Fome, do qual se libertou pioneiramente em 2014. Isso é inconciliável com a estabilidade política que a retomada do crescimento requer.
O Brasil já mostrou do que é capaz ao reduzir em 82% o universo da desnutrição, ou seja, da fome, no período de 2002 a 2014. Foi a maior queda verificada entre as seis nações mais populosas da Terra, e de longe superior à média obtida na América Latina no período (43,1%). Em 2014, segundo dados da FAO, o Brasil tinha apenas 3,4 milhões de desnutridos.
Como se conseguiu romper essa crosta sedimentada em cinco séculos de desigualdade granítica, fundada desde a instituição das capitanias hereditárias, que deram semente jurídica a uma assimetria patrimonial nunca enfrentada? Com políticas públicas inclusivas.
A prioridade à segurança alimentar nos últimos 13 anos criou um generoso guarda-chuva social, sob o qual se abrigam milhões de famílias beneficiadas pelo Bolsa Família, o Pronaf, o Programa Nacional de Alimentação Escolar, a valorização do salário mínimo, a aposentadoria rural plena, as cisternas no Nordeste, entre outras ações de uma lista de algumas dezenas de medidas.
Estudos recentes da equipe de Thomás Piketty mostram que essas iniciativas não são suficientes para alterar a linha pétrea da desigualdade brasileira, cujo ponto de partida patrimonial é um dos mais assimétricos do planeta. Controvérsias à parte, o que realmente assusta na concentração de renda brasileira é a sua estabilidade.
É difícil mover o índice de Gini, mas quando você eleva a base da sociedade e avança na universalização de direitos sociais, a cauda inferior da miséria e da fome é seccionada com desdobramentos inestimáveis, se não houver retrocesso.
A forma de evitar o retrocesso é avançar sobre a fatura social para que ela não nos devore. O custo de fazê-lo pela metade é alto. Fomos a última nação ocidental a abolir a escravidão, após 388 anos de senzala e casa grande. E não o fizemos por inteiro. Quarenta anos antes da Lei Áurea, foi concedida a liberdade aos filhos de escravos, com uma restrição refundadora da exclusão: a Lei da Terra de 1850 proibia os filhos de escravos de acesso à propriedade fundiária.
Criou-se uma enorme massa de pobres dependentes da agricultura, sem acesso aos meios de produção. Pior: gerou-se uma engrenagem excludente que marcou a própria industrialização. Não tivemos a miríade de pequenas manufaturas coaguladas depois em grandes corporações. Nosso parque fabril já nasceu como grande indústria!
Fraturas sociais acumuladas nesse padrão de grandes estruturas que dispensaram as pequenas associações bateram à porta do Estado, da urbanização e da democracia nos anos 1960 e 70, quando os gargalos foram magnificados pelo apogeu da modernização excludente do campo.
Frequentemente se evoca a educação como panaceia para corrigir o trem descarrilhado do Brasil. A escola tem muito a contribuir. Mas não é a diferença de acesso a ela que explica a desigualdade. Ao contrário, é a desigualdade da riqueza captada por ela que se traduz nas diferenças de escolaridade.
Não há bala de prata. O passo indispensável rumo a uma sociedade mais justa é incluir os pobres no orçamento do Estado.
Essa admissão orçamentária é a mola propulsora capaz de mover outras de natureza tributária ou política. Duas notícias decorrentes daí se oferecem ao escrutínio do país nesse divisor de sua história. A boa é que o Brasil já pactuou a inclusão do pobre no orçamento desde a Constituição Cidadã de 1988. E a implementou com resultados auspiciosos.
No início do século XXI, o país tinha 41 milhões de miseráveis; esse contingente caiu a 2,5% da população dez anos depois. Em colóquio recente do qual participamos no Forum Brazil 2018, organizado pela London School of Economics, a ex-ministra Tereza Campello lembrava um fato que resume todos os demais: o Nordeste vive a pior seca em 100 anos, mas não há fome, não há saque, não há êxodo.
Agora a má notícia: os recursos que propiciaram esse enraizamento da inclusão estão se esvaindo do orçamento. Para manter o ritmo de emancipação da pobreza da década de 2000, o Programa de Aquisição da Agricultura Familiar, por exemplo, teria que reverter uma perda orçamentária recente de 44%; o estratégico Programa Nacional de Alimentação Escolar teria que quintuplicar a dotação atual; o mesmo vale para o Programa de Cisternas; e o Bolsa Família teria que reverter o desempenho negativo dos últimos dois anos.
A desigualdade originária não cedeu, mas em pouco mais de uma década o degelo social abriu avenidas inclusivas pavimentadas por políticas públicas transparentes e permanentemente monitoradas.
Isso não tem preço. Ou melhor, tem. Mas é barato comparado ao retorno que propicia em vigor econômico e democrático. Esse é o cálculo sereno que precisa ser feito: o Brasil já fez o mais difícil. Dispomos da capacitação para ampliar a rota inclusiva. Temos que exercê-la no orçamento da oitava maior economia da Terra.
*Publicado originalmente no jornal Valor Econômico, em 17 de maio de 2018

Nenhum comentário:

Postar um comentário