DIREITO A MEMÓRIA E À VERDADE
Depoimentos
chocantes de mulheres que foram torturadas e estupradas nos porões da
ditadura militar Direito à memória e à verdade : Luta, substantivo
feminino Merlino, Tatiana Ojeda, Igor orgs: Direito à memória e à
verdade : Luta, substantivo feminino Tatiana Merlino. - São Paulo : Editora
Caros Amigos, 2010.
Sobe
depressa, Miss Brasil’, dizia o torturador enquanto me empurrava e beliscava
minhas nádegas escada acima no Dops. Eu sangrava e não tinha absorvente. Eram
os ‘40 dias’ do parto. Na sala do delegado Fleury, num papelão, uma caveira
desenhada e, embaixo, as letras EM, de Esquadrão da Morte. Todos deram risada
quando entrei. ‘Olha aí a Miss Brasil. Pariu noutro dia e já está magra, mas
tem um quadril de vaca’, disse ele. Um outro: ‘Só pode ser uma vaca
terrorista’. Mostrou uma página de jornal com a matéria sobre o prêmio da vaca
leiteira Miss Brasil numa exposição de gado. Riram mais ainda quando ele veio
para cima de mim e abriu meu vestido. Picou a página do jornal e atirou em mim.
Segurei os seios, o leite escorreu. Ele ficou olhando um momento e fechou o
vestido. Me virou de costas, me pegando pela cintura e começaram os beliscões
nas nádegas, nas costas, com o vestido levantado. Um outro segurava meus
braços, minha cabeça, me dobrando sobre a mesa. Eu chorava, gritava, e eles
riam muito, gritavam palavrões. Só pararam quando viram o sangue escorrer nas
minhas pernas. Aí me deram muitas palmadas e um empurrão. Passaram-se alguns
dias e ‘subi’ de novo. Lá estava ele, esfregando as mãos como se me esperasse.
Tirou meu vestido e novamente escondi os seios. Eu sabia que estava com um
cheiro de suor, de sangue, de leite azedo. Ele ria, zombava do cheiro horrível
e mexia em seu sexo por cima da calça com um olhar de louco. No meio desse
terror, levaram-me para a carceragem, onde um enfermeiro preparava uma injeção.
Lutei como podia, joguei a latinha da seringa no chão, mas um outro segurou-me
e o enfermeiro aplicou a injeção na minha coxa. O torturador zombava: ‘Esse
leitinho o nenê não vai ter mais’. ‘E se não melhorar, vai para o barranco,
porque aqui ninguém fica doente.’ Esse foi o começo da pior parte. Passaram a
ameaçar buscar meu fillho. ‘Vamos quebrar a perna’, dizia um. ‘Queimar com
cigarro’, dizia outro.
ROSE
NOGUEIRA, ex-militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), era jornalista
quando foi presa em 4 de novembro de 1969, em São Paulo (SP). Hoje, vive na
mesma cidade, onde é jornalista e defensora dos direitos humanos.
Eram
mais ou menos 2 horas da manhã quando chegaram à fazenda dos meus sogros em
Nova Aurora. A cidade era pequena e foi tomada pelo Exército. Mobilizaram
cerca de setecentos homens para a operação. Eu, meu companheiro e os pais
dele fomos torturados a noite toda ali, um na frente do outro. Era muito
choque elétrico. Fomos literalmente saqueados. Levaram tudo o
que tínhamos: as economias do meu sogro, a roupa de cama e até o meu
enxoval. No dia seguinte, fomos transferidos para o Batalhão de Fronteira
de Foz do Iguaçu, onde eu e meu companheiro fomos torturados pelo capitão
Júlio Cerdá Mendes e pelo tenente Mário Expedito Ostrovski. Foi pau de
arara, choques elétricos, jogo de empurrar e, no meu caso, ameaças de
estupro. Dias depois, chegaram dois caras do Dops do Rio, que exibiam um
emblema do Esquadrão da Morte na roupa, para ‘ajudar’ no interrogatório.
Eu fi cava horas numa sala, entre perguntas e tortura física. Dia e noite.
Eu estava grávida de dois meses, e eles estavam sabendo. No quinto dia,
depois de muito choque, pau de arara, ameaça de estupro e insultos, eu
abortei. Depois disso, me colocaram num quarto fechado, fiquei
incomunicável. Durante os dias em que fi quei muito mal, fui cuidada e
medicada por uma senhora chamada Olga. Quando comecei a melhorar, voltaram
a me torturar. Nesse período todo, eu fui insultadíssima, a agressão moral
era permanente. Durante a noite, era um pânico quando eles vinham anunciar
que era hora da tortura. Quando você começava a se recompor,
eles iniciavam a tortura de novo, principalmente depois que chegaram os
caras do Dops. Durante anos, eu tive insônia, acordava durante a noite
transpirando. De Foz, fomos levados para o Dops de Porto Alegre, onde
houve outras sessões de tortura, um na frente do outro. Depois, fomos
levados de volta para Curitiba, onde fiquei na penitenciária de Piraquara.
Quando fi nalmente fui para a prisão domiciliar, que durou quatro meses,
eu sofri muito, fui muito perseguida e ameaçada. Recebia telefonemas
anônimos, passava noites sem dormir.
IZABEL
FÁVERO, ex-militante da VAR-Palmares, era professora quando foi presa em 5
de maio de 1970, em Nova Aurora (PR). Hoje, vive no Recife (PE), onde é
professora de Administração da Faculdade Santa Catarina.
Teve
uma tortura que aconteceu na véspera do Sete de Setembro. Sei que foi esse
dia porque a gente escutava o ensaio das bandas. Me levaram para uma
sala com acústica de madeira. Tocava uma música de enlouquecer. Era um som
como se estivessem arranhando a parede. A música foi aumentando cada vez
mais. Quando eu saí de lá, minha cabeça estava latejando. Por pouco eu não
enlouqueci. Lá no DOI-Codi, todo dia eu ia para o interrogatório, e as
torturas eram de todas as formas, como na cadeira do dragão, e sempre nua.
E eles ameaçavam as pessoas que a gente conhecia. Um dia me chamaram e eu
vi o Paulo [Stuart Wright] encapuzado. Reconheci-o pelo terno que ele
estava usando, que fui eu quem tinha dado para ele, e também pela voz. Os
torturadores falavam muito das presas, ridicularizavam, gritando para você
ouvir. Eram coisas libidinosas, como do tamanho da vagina de uma pessoa
que eu conhecia. Uma vez, eles me chamaram para um interrogatório com um
homem negro que diziam ser um psicólogo. Isso foi muito tocante para mim,
porque é claro que chamaram um homem negro para eu me sentir identifi
cada. Um dia, eles me chamaram no pátio e lá estava o satanás encarnado, o
capitão Ubirajara [codinome do delegado de polícia Laerte Aparecido
Calandra], apoiado num carro, e um outro ao lado dele em pé, e um bando de
homens do outro lado. Ele me pôs para marchar na frente dele, para lá e
para cá, para lá e para cá durante um bom tempo. E os homens falando: ‘Ô
negra feia. Isso aí devia estar é no fogão. Negra horrorosa, com esse
barrigão. Isso aí não serve nem para cozinhar. Isso aí não precisava
nem comer com essa banhona, negra horrorosa’. E eu tendo de marchar. Imagine
só, rebaixar o ser humano a esse ponto...
MARIA
DIVA DE FARIA era enfermeira quando foi presa em 5 de setembro de 1973, em São
Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade e é aposentada.
Ele
me disse: ‘Se você sair viva daqui, o que não vai acontecer, você pode me
procurar no futuro. Eu sou o chefe, sou o Jesus Cristo [codinome do
delegado de polícia Dirceu Gravina]’. Ele falava isso e virava a
manivela para me dar choque. Ele também dizia: ‘Que militante de
direitos humanos coisa nenhuma, nada disso, vocês estão envolvidos’. E
virava a manivela. Havia umas ameaças assim: ‘Vamos prender todos os
advogados de direitos humanos, colocá-los num avião e soltar na Amazônia’.
Nos outros interrogatórios, eles perguntavam qual era a minha opção
política, o que eu pensava, quem pagava os meus honorários, quais eram os
meus contatos no exterior, o que eu pensava do comunismo. Para mim, fi
cou muito claro que eles queriam atemorizar advogado de preso político.
Havia uma mudança no tom das equipes. Eram três, e ia piorando. Durante
o interrogatório da segunda equipe, eu levei uma bofetada de um e o
outro me segurou: ‘Está bravinha porque levou uma bofetada?’. E os homens
da terceira equipe diziam: ‘Saia disso, onde já se viu defender esses
caras, gente perigosíssima, não se meta nisso!’. Eu estava formada havia
menos de um ano, e trabalhava desde o segundo ano no escritório do
advogado José Carlos Dias, defendendo presos políticos. Essa era a forma
que eu tinha de resistir à ditadura militar, foi minha opção de
participação na resistência. Eu fui presa sem nenhuma acusação, fiquei
três dias lá sem saber porque estava presa. No terceiro ou quarto dia, eu
descobri o motivo: teriam achado num ‘aparelho’ um manuscrito do Carlos
Eduardo Pires Fleury, que tinha sido banido do país e que foi meu colega e
cliente no escritório. Eu não fui das mais torturadas. Levei choque uma
manhã inteira, acho que para saber se eu tinha algum envolvimento com
alguma organização clandestina e paraque os advogados soubessem que não era
fácil para quem militava.
MARIA
LUIZA FLORES DA CUNHA BIERRENBACH era advogada de presos políticos quando
foi presa em 8 de novembro de 1971, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma
cidade, onde é procuradora do Estado aposentada.
Muitos
deles vinham assistir para aprender a torturar. E lá estava eu, uma mulher
franzina no meio daqueles homens alucinados, que quase babavam. Hoje, eu ainda
vejo a cara dessas pessoas, são lembranças muito fortes. Eu vejo a cara do
estuprador. Era uma cara redonda. Era um homem gordo, que me dava choques na
vagina e dizia: ‘Você vai parir eletricidade’. Depois disso, me estuprou ali
mesmo. Levei muitos murros, pontapés, passei por um corredor polonês. Fiquei um
tempão amarrada num banco, com a cabeça solta e levando choques nos dedos dos
pés e das mãos. Para aumentar a carga dos choques, eles usavam uma televisão,
mudando de canal, ‘telefone’, velas acesas, agulhas e pingos de água no nariz,
que é o único trauma que permaneceu até hoje. Em todas as vezes em que eu era
pendurada, eu fi cava nua, amarrada pelos pés, de cabeça para baixo, enquanto
davam choques na minha vagina, boca, língua, olhos, narinas. Tinha um bastão
com dois pontinhos que eles punham muito nos seios. E jogavam água para o
choque fi car mais forte, além de muita porrada. O estupro foi nos primeiros
dias, o que foi terrível para mim. Eu tinha de lutar muito para continuar
resistindo. Felizmente, eu consegui. Só que eu não perco a imagem do homem. É
uma cena ainda muito presente. Depois do estupro, houve uma pequena trégua,
porque eu estava desfalecida. Eles tinham aplicado uma injeção de pentotal, que
chamavam de ‘soro da verdade’, e eu estava muito zonza. Eles tiveram muito ódio
de mim porque diziam que eu era macho de aguentar. Perguntavam quem era meu
professor de ioga, porque, como eu estava aguentando muito a tortura, na cabeça
deles eu devia fazer ioga. Me tratavam de ‘puta’, ‘ordinária’. Me tratavam como
uma pessoa completamente desumana. Eu também os enfrentei muito. Com certa
tranquilidade, eu dizia que eles eram seres anormais, que faziam parte de uma
engrenagem podre. Eu me sentia fortalecida com isso, me achava com a moral mais
alta.
DULCE
MAIA, ex-militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), era produtora
cultural quando foi presa na madrugada de 26 de janeiro de 1969, em São Paulo
(SP).Hoje, vive em Cunha (SP), é ambientalista, dirige a ONG Ecosenso e é
cogestora do Parque Nacional da Serra da Bocaina.