A Amazônia é o centro do
mundo
Eliane Brum apresentou este discurso durante jantar
no primeiro encontro do 'Rainforest Journalism Fund', em Manaus, em julho
09 AGO 2019
Eu quero começar lembrando onde nós
estamos.
E quero lembrar que nós estamos no
centro do mundo. Essa não é uma frase retórica. Também não é uma tentativa de
construir uma frase de efeito. No momento em que o planeta vive o colapso
climático, a floresta amazônica é efetivamente o centro do mundo.
Ou, pelo menos, é um dos principais centros do mundo. Se não compreendermos
isso, não há como enfrentar o desafio do clima.
Esta é justamente a razão de colocarmos
o nosso corpo aqui, nesta cidade, Manaus, capital do Amazonas, estado do
Brasil, país que abriga cerca de 60% da Amazônia. Manaus é tanto uma floresta
em ruínas como as ruínas de uma ideia de país. Manaus pode ser vista como a
escultura viva de um conflito iniciado em 1500, com a invasão europeia que
causou a morte de centenas de milhares de homens e mulheres indígenas e a
extinção de dezenas de povos. Neste momento, em 2019, testemunhamos o início de
um novo e desastroso capítulo.
O Brasil é um grande construtor de
ruínas. O Brasil constrói ruínas em dimensões continentais desde que começou a
ser inventado pelos europeus no século 16. Neste momento, uma forma de vida
predatória chamada bolsonarismo assumiu o poder quase total e totalitário no
Brasil. O principal projeto do bolsonarismo é justamente construir ruínas com
método e com velocidade na floresta amazônica. É por isso que pela primeira
vez, desde a redemocratização do país, temos um ministro contra o meio
ambiente.
Nenhum ministro do meio ambiente dos
últimos mais de 30 anos teve a autonomia que já demonstrou ter Ricardo Salles, o ministro contra o meio
ambiente. Ele é o office-boy do agronegócio predatório, este
que é responsável pela maioria das mortes no campo e na floresta e é também a
maior força de destruição do Brasil. Não é que hoje os ruralistas estão no
Governo. No governo eles estiveram desde sempre, formalmente ou não. Hoje eles
são o Governo.
O principal projeto de poder do
bolsonarismo é converter as terras públicas que servem a todos, na medida em
que garantem a preservação dos biomas naturais e a vida dos povos originários,
em terras privadas para lucros de poucos. Estas terras, a maioria delas na
floresta amazônica, são as terras públicas de usufruto dos povos indígenas, as
terras públicas ocupadas pelos ribeirinhos (população que vive da pesca, da
coleta do látex, da castanha e de outros frutos da floresta há mais de um
século), e as terras de uso coletivo dos quilombolas (descendentes de escravos
rebeldes que conquistaram seu direito aos territórios ocupados pelos
antepassados).
As disputas entre os vários grupos que
ocupam o Governo é constante, inclusive porque o Governo Bolsonaro tem como estratégia
simular sua própria oposição, ocupando todos os espaços. A abertura das terras
protegidas dos povos indígenas e a abertura das áreas de conservação,
entretanto, despontam como consenso. Sobre transformar a maior floresta
tropical do planeta em boi, soja e mineração não há briga. Algumas das vozes
levemente dissonantes já foram deletadas do Governo.
O bolsonarismo vai muito além da
criatura que lhe dá nome. Eventualmente, em algum momento, o bolsonarismo pode
inclusive prescindir de Jair Bolsonaro. O bolsonarismo, intimamente conectado à
crise global das democracias, está influenciando toda a região amazônica,
fazendo com que figuras que se mantiveram nos esgotos por anos, às vezes
décadas, estejam hoje emergindo em outros países da América
Latina onde também o destino da maior floresta tropical do
mundo está sendo decidido. O bolsonarismo, vale repetir, não é uma ameaça
apenas para o Brasil, mas para o planeta. Exatamente porque ele destrói a
floresta estratégica para o controle do aquecimento global.
Como resistir a essa enorme força de
destruição, a essa competente força de destruição?
Para sermos capazes de resistir nós
precisamos nos tornar floresta — e resistir como floresta. Como floresta
que sabe que carrega consigo as ruínas, que carrega consigo tanto o que é
quanto o que deixou de ser. Me parece que é a esse sentimento político-afetivo
que precisamos dar forma para dar sentido à nossa ação. Para isso temos que
deslocar algumas placas tectônicas de nosso próprio pensamento. Temos que
descolonizar a nós mesmos.
O fato de a Amazônia ainda
ser vista como um longe e também — ou principalmente — como uma
periferia dá a dimensão da estupidez da cultura ocidental branca, de matriz
primeiro europeia e depois norte-americana, essa estupidez que molda e dá forma
às elites políticas e econômicas do mundo e também do Brasil. E, em parte,
também às elites intelectuais do Brasil e do planeta. Acreditar que a Amazônia
é longe e que a Amazônia é periferia, quando qualquer possibilidade de controle
do aquecimento global só é possível com a floresta viva, é uma ignorância de proporções
continentais. A floresta é o perto mais perto que todos nós aqui temos. E o
fato de muitos de nós nos sentirmos longe quando aqui estamos só mostra o
quanto o nosso olhar está contaminado, formatado e distorcido. Colonizado.
Dias atrás eu conversava com
procuradores e defensores públicos que chegaram há pouco em cidades do interior
amazônico. Era o primeiro posto deles. Porque essa é a lógica. A Amazônia é o
epicentro dos conflitos, mas, para fiscalizar o Estado e defender os direitos
dos mais desamparados, as instituições mandam os sem nenhuma experiência.
Alguns deles — não todos — interpretam que estão sendo enviados a uma
região amazônica como um teste ou mesmo um castigo, um calvário que precisam
passar antes de ter um posto “decente”. Parte deles — não todos — não
vê a hora de ter o que é chamado de “remoção” e deixar essa bad trip para
trás. E não é culpa deles, ou não é só culpa deles, porque essa é a lógica das
instituições, este é o olhar para a Amazônia. Felizmente alguns deles percebem
a importância do seu papel, aprendem, compreendem, permanecem e se tornam
servidores públicos essenciais para a luta pelos direitos em regiões onde os
direitos pouco ou nada valem.
Lembrei a eles que, como eu, eram
privilegiados. Eles estavam justamente no centro do mundo. Eles estavam no
melhor lugar para se estar para quem tinha escolhido aquela profissão. Mas
teriam que se esforçar muito para superar a sua ignorância, como eu me esforço
todos os dias para superar a minha. Era a população local, eram os povos da
floresta que teriam de ter enorme paciência para explicar a eles o que precisam
saber, já que pouco ou nada sabem quando aqui chegam. O mesmo princípio vale
para jornalistas e também para cientistas.
Se nós nos reunirmos aqui acreditando
que somos especiais por estarmos preocupados com a floresta, não teremos
compreendido nada. Se nós compreendermos a nós mesmos — nós jornalistas,
nós cientistas, nós brancos para muito além da cor da pele —, como aqueles que
deixam o conforto de suas casas em cidades “desenvolvidas” e supostamente com
mais opções de lazer e cultura para se solidarizarem com os povos da floresta,
também não teremos entendido nada. Se existe uma verdade ela está nas ruínas. A
única verdade são as ruínas.
Durante mais de duas décadas, eu me
desloquei para as diferentes regiões da Amazônia e depois voltei para Porto
Alegre, primeiro, depois para São Paulo, onde vivia. Em 2017, me mudei para
Altamira, para deixar de ser “enviada especial” à Amazônia, mudar o ponto de
vista a partir do qual eu olhava para o Brasil e para o planeta e ser coerente
com a convicção de que a floresta é o centro do mundo.
Na chegada, tive dificuldades para
alugar uma casa. Algumas das que eu gostava pertenciam a grileiros e/ou
mandantes de crimes contra povos da floresta e pequenos agricultores. Porque
aqui, no centro do mundo, a relação é direta. Não é que os proprietários de
casas, apartamentos, hotéis e condomínios de São Paulo sejam mais “limpinhos”,
é que a cadeia entre o crime e a ponta é mais longa e tem mais intermediários.
Nas grandes cidades do Brasil e do
mundo, somos afastados das mortes das quais nossos pequenos atos cotidianos se
fazem cúmplices, temos o privilégio de não sermos obrigados a questionar a
origem da roupa que vestimos ou a origem da comida que comemos. Aqui, na
Amazônia, se você come boi, tem certeza que é boi de desmatamento. Se você
compra madeira, sabe que (quase) não existe madeira efetivamente legal no
Brasil. Se você compra uma mesa ou um guarda-roupa vai ficar olhando para esses
móveis e pensando que muito provavelmente eles foram feitos com madeira
arrancada de terra indígena ou de uma reserva extrativista. Aqui, no centro do
mundo, a relação com a morte da floresta e dos povos da floresta, assim como
com a morte dos agricultores familiares, é direta. É inescapável. E só podemos
viver carregando — conscientemente — tanto nossas contradições quanto
nossas ruínas.
Por isso, temos que enfrentar também a
contradição de estarmos aqui, financiados neste evento, por recursos da Noruega.
A Noruega também sustenta majoritariamente o Fundo Amazônia, hoje sob ataque do
Governo de Bolsonaro. A continuidade do Fundo Amazônia, principal financiador
da proteção da floresta, é essencial para barrar, ainda que minimamente, a
destruição acelerada do bioma. Este fato não nos absolve, porém, da necessidade
de refletir que o Rainforest Journalism Fund é financiado, em grande parte, por
dinheiro proveniente do petróleo, já que a Noruega é o maior produtor
de petróleo da Europa. A Noruega tem ainda participação em frentes de
destruição da Amazônia, como a empresa Hydro Alunorte, que contaminou os rios
de Barcarena, no Pará. Só podemos seguir adiante enfrentando todas essas
contradições — e não fugindo delas. E exigindo melhores práticas e mais
coerência da Noruega.
Por caminhos diferentes, penso que nós
estamos aqui, e não só os que vieram de fora, mas também os que já se colocaram
geograficamente aqui neste território, porque sabemos que nossa vida depende
disso. Mesmo que este ainda não seja um sentimento — ou mesmo um
pensamento — que todos possam nomear. Não estamos aqui para ajudar os
povos da floresta, contando o que está acontecendo aqui para o mundo de lá, mas
sim estamos aqui para, humildemente, perguntar se eles nos aceitam ao seu lado
na luta.
Somos nós que precisamos da ajuda dos
povos da floresta. É deles o conhecimento sobre como viver apesar das ruínas.
São eles os que têm experiência sobre como resistir às grandes forças de
destruição. Para que tenhamos alguma chance de produzir movimento de resistência
precisamos compreender que, nesta luta, nós não somos os protagonistas.
Sem compreender nosso lugar nessa luta
e estarmos dispostos a compartilhar o pouco poder que temos, ou mesmo ceder
esse poder, acredito que será muito difícil produzir movimento real. Desta vez,
somos nós que precisamos nos deixar ocupar, permitir que nosso corpo seja
afetado por outras experiências de ser e de estar neste planeta. Não como uma
violência, como foi a colonização da Amazônia e de seus povos, esta que está em
processo até hoje, e em processo cada vez mais acelerado. Mas, desta vez, como
troca, como mistura, como relação amorosa, como sexo consentido.
Reproduzo aqui uma fala do filósofo
Peter Pál Pelbart, que faz essa síntese de forma brilhante: “Talvez o desafio
seja abandonar a dialética do Mesmo e do Outro, da Identidade e da Alteridade,
e resgatar a lógica da Multiplicidade. Não se trata mais, apenas, do meu
direito de ser diferente do Outro ou do direito do Outro de ser diferente de
mim, preservando em todo caso entre nós uma oposição. Nem mesmo se trata de uma
relação de apaziguada coexistência entre nós, onde cada um está preso à sua
identidade feito um cachorro ao poste, e portanto nela encastelado. Trata-se de
algo mais radical, nesses encontros, de também embarcar e assumir traços do
outro, e com isso às vezes até diferir de si mesmo, descolar-se de si,
desprender-se da identidade própria e construir sua deriva inusitada”.
Durante muito tempo nós, jornalistas e
cientistas brancos ocidentais, e quando me refiro a brancos ocidentais me
refiro a muito além da cor da pele, me refiro a um modo de pensar e de habitar
esse mundo, usamos os povos da floresta apenas como fontes do nosso trabalho.
Cientistas de todas as áreas, e também da área de humanas, fizeram sua carreira
a partir do conhecimento dos povos da floresta citando-os nos trabalhos
acadêmicos apenas como “informantes”, isso quando os citavam.
Embora essa prática ainda seja
largamente exercida na produção científica, muitos já começam a compreender que
já não é eticamente possível fazer isso. Os povos da floresta precisam ser
reconhecidos, no mínimo, como coautores. Os intelectuais, assim como os
cientistas, não se restringem à academia. Os intelectuais e os cientistas estão
também — e muito — na floresta.
É isso que muitos intelectuais
indígenas estão dizendo no mundo inteiro neste momento. No Brasil, a obra mais
expressiva de coautoria entre um intelectual acadêmico e um intelectual da
floresta é A Queda do Céu, resultado de uma parceria efetiva, real,
de mútuo respeito e mútuo aprendizado, entre Davi Kopenawa, intelectual
yanomami, e Bruce Albert, antropólogo francês.
Talvez o debate mais fundamental que
precisamos empreender no jornalismo é como esse desafio ético e também estético
pode ocupar a produção jornalística neste momento crucial. Como colaborar com
os povos da floresta para invadir e ocupar o jornalismo a partir de suas
próprias experiências — e não apenas se deixando formatar pelo nosso
modelo de imprensa. Esta, me parece, não deve ser apenas uma ocupação de
espaço, com indígenas, ribeirinhos e quilombolas fazendo jornalismo. Deve ser
também uma transformação do espaço, do próprio fazer jornalístico.
Uma das maneiras de começar esse
movimento no Rainforest Journalism Fund é estimular a coautoria nos projetos de
reportagem porque, a maneira mais efetiva de ocupar os espaços de poder é...
ocupando os espaços de poder. E, de novo, devemos aceitar esse desafio não
porque somos cool ou por concessão ou por favor — e nem
mesmo porque é o mais correto a se fazer —, mas porque precisamos muito
aprender e porque podemos ensinar. Precisamos nos inventar de outro jeito se
quisermos ter uma chance de enfrentar este momento em que a espécie humana se
tornou ela mesma a catástrofe que temia.
Bolsonaro não é apenas uma ameaça para
a Amazônia. É uma ameaça para o planeta exatamente porque é uma ameaça para a
Amazônia. Diante desta força acelerada de destruição que é o bolsonarismo nós,
de todas as nacionalidades, precisamos fazer como os africanos escravizados que
se rebelaram contra o opressor. Precisamos nos aquilombar. E, como não sabemos
fazer isso, teremos que ter a humildade de aprender com quem sabe.
O melhor — e o mais potente —
do Brasil atual e da Amazônia, em todas as regiões, são as periferias que
reivindicam o lugar de centro. Nossa melhor chance é nos somar às forças do
real centro do mundo onde a disputa pelo futuro é travada, às vezes a bala.
É a esse movimento que nós, jornalistas
e cientistas, precisamos humildemente servir. Espero que os povos da floresta
possam, depois de tudo o que fizemos contra seus corpos, nos aceitar ao seu
lado na luta.
Discurso
da jornalista, escritora e documentarista Eliane Brum, integrante do comitê
fundador, consultivo e julgador do Rainforest Journalism Fund, que financia reportagens
na Amazônia e em outras florestas tropicais, em parceria com o Centro Pulitzer.
A fala foi realizada em 12 de julho de 2019, em Manaus (Amazonas/Brasil),
durante jantar em que participaram os jornalistas reunidos para o primeiro
encontro do Rainforest Journalism Fund e cientistas reunidos
para o encontro Sciencetelling Bootcamp & Explorer Spotlight, da National
Geographic Society.
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