domingo, 30 de março de 2014

DEPOIMENTOS CHOCANTES DE MULHERES QUE FORAM TORTURADAS E ESTUPRADAS NOS PORÕES DA DITADURA MILITAR

DIREITO A MEMÓRIA E À VERDADE

Depoimentos chocantes de mulheres que foram torturadas e estupradas nos porões da ditadura militar Direito à memória e à verdade : Luta, substantivo feminino Merlino, Tatiana Ojeda, Igor orgs: Direito à memória e à verdade : Luta, substantivo feminino Tatiana Merlino. - São Paulo : Editora Caros Amigos, 2010.
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Sobe depressa, Miss Brasil’, dizia o torturador enquanto me empurrava e beliscava minhas nádegas escada acima no Dops. Eu sangrava e não tinha absorvente. Eram os ‘40 dias’ do parto. Na sala do delegado Fleury, num papelão, uma caveira desenhada e, embaixo, as letras EM, de Esquadrão da Morte. Todos deram risada quando entrei. ‘Olha aí a Miss Brasil. Pariu noutro dia e já está magra, mas tem um quadril de vaca’, disse ele. Um outro: ‘Só pode ser uma vaca terrorista’. Mostrou uma página de jornal com a matéria sobre o prêmio da vaca leiteira Miss Brasil numa exposição de gado. Riram mais ainda quando ele veio para cima de mim e abriu meu vestido. Picou a página do jornal e atirou em mim. Segurei os seios, o leite escorreu. Ele ficou olhando um momento e fechou o vestido. Me virou de costas, me pegando pela cintura e começaram os beliscões nas nádegas, nas costas, com o vestido levantado. Um outro segurava meus braços, minha cabeça, me dobrando sobre a mesa. Eu chorava, gritava, e eles riam muito, gritavam palavrões. Só pararam quando viram o sangue escorrer nas minhas pernas. Aí me deram muitas palmadas e um empurrão. Passaram-se alguns dias e ‘subi’ de novo. Lá estava ele, esfregando as mãos como se me esperasse. Tirou meu vestido e novamente escondi os seios. Eu sabia que estava com um cheiro de suor, de sangue, de leite azedo. Ele ria, zombava do cheiro horrível e mexia em seu sexo por cima da calça com um olhar de louco. No meio desse terror, levaram-me para a carceragem, onde um enfermeiro preparava uma injeção. Lutei como podia, joguei a latinha da seringa no chão, mas um outro segurou-me e o enfermeiro aplicou a injeção na minha coxa. O torturador zombava: ‘Esse leitinho o nenê não vai ter mais’. ‘E se não melhorar, vai para o barranco, porque aqui ninguém fica doente.’ Esse foi o começo da pior parte. Passaram a ameaçar buscar meu fillho. ‘Vamos quebrar a perna’, dizia um. ‘Queimar com cigarro’, dizia outro.
ROSE NOGUEIRA, ex-militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), era jornalista quando foi presa em 4 de novembro de 1969, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade, onde é jornalista e defensora dos direitos humanos.
Eram mais ou menos 2 horas da manhã quando chegaram à fazenda dos meus sogros em Nova Aurora. A cidade era pequena e foi tomada pelo Exército. Mobilizaram cerca de setecentos homens para a operação. Eu, meu companheiro e os pais dele fomos torturados a noite toda ali, um na frente do outro. Era muito choque elétrico. Fomos literalmente saqueados. Levaram tudo o que tínhamos: as economias do meu sogro, a roupa de cama e até o meu enxoval. No dia seguinte, fomos transferidos para o Batalhão de Fronteira de Foz do Iguaçu, onde eu e meu companheiro fomos torturados pelo capitão Júlio Cerdá Mendes e pelo tenente Mário Expedito Ostrovski. Foi pau de arara, choques elétricos, jogo de empurrar e, no meu caso, ameaças de estupro. Dias depois, chegaram dois caras do Dops do Rio, que exibiam um emblema do Esquadrão da Morte na roupa, para ‘ajudar’ no interrogatório. Eu fi cava horas numa sala, entre perguntas e tortura física. Dia e noite. Eu estava grávida de dois meses, e eles estavam sabendo. No quinto dia, depois de muito choque, pau de arara, ameaça de estupro e insultos, eu abortei. Depois disso, me colocaram num quarto fechado, fiquei incomunicável. Durante os dias em que fi quei muito mal, fui cuidada e medicada por uma senhora chamada Olga. Quando comecei a melhorar, voltaram a me torturar. Nesse período todo, eu fui insultadíssima, a agressão moral era permanente. Durante a noite, era um pânico quando eles vinham anunciar que era hora da tortura. Quando você começava a se recompor, eles iniciavam a tortura de novo, principalmente depois que chegaram os caras do Dops. Durante anos, eu tive insônia, acordava durante a noite transpirando. De Foz, fomos levados para o Dops de Porto Alegre, onde houve outras sessões de tortura, um na frente do outro. Depois, fomos levados de volta para Curitiba, onde fiquei na penitenciária de Piraquara. Quando fi nalmente fui para a prisão domiciliar, que durou quatro meses, eu sofri muito, fui muito perseguida e ameaçada. Recebia telefonemas anônimos, passava noites sem dormir.
IZABEL FÁVERO, ex-militante da VAR-Palmares, era professora quando foi presa em 5 de maio de 1970, em Nova Aurora (PR). Hoje, vive no Recife (PE), onde é professora de Administração da Faculdade Santa Catarina.
Teve uma tortura que aconteceu na véspera do Sete de Setembro. Sei que foi esse dia porque a gente escutava o ensaio das bandas. Me levaram para uma sala com acústica de madeira. Tocava uma música de enlouquecer. Era um som como se estivessem arranhando a parede. A música foi aumentando cada vez mais. Quando eu saí de lá, minha cabeça estava latejando. Por pouco eu não enlouqueci. Lá no DOI-Codi, todo dia eu ia para o interrogatório, e as torturas eram de todas as formas, como na cadeira do dragão, e sempre nua. E eles ameaçavam as pessoas que a gente conhecia. Um dia me chamaram e eu vi o Paulo [Stuart Wright] encapuzado. Reconheci-o pelo terno que ele estava usando, que fui eu quem tinha dado para ele, e também pela voz. Os torturadores falavam muito das presas, ridicularizavam, gritando para você ouvir. Eram coisas libidinosas, como do tamanho da vagina de uma pessoa que eu conhecia. Uma vez, eles me chamaram para um interrogatório com um homem negro que diziam ser um psicólogo. Isso foi muito tocante para mim, porque é claro que chamaram um homem negro para eu me sentir identifi cada. Um dia, eles me chamaram no pátio e lá estava o satanás encarnado, o capitão Ubirajara [codinome do delegado de polícia Laerte Aparecido Calandra], apoiado num carro, e um outro ao lado dele em pé, e um bando de homens do outro lado. Ele me pôs para marchar na frente dele, para lá e para cá, para lá e para cá durante um bom tempo. E os homens falando: ‘Ô negra feia. Isso aí devia estar é no fogão. Negra horrorosa, com esse barrigão. Isso aí não serve nem para cozinhar. Isso aí não precisava nem comer com essa banhona, negra horrorosa’. E eu tendo de marchar. Imagine só, rebaixar o ser humano a esse ponto...
MARIA DIVA DE FARIA era enfermeira quando foi presa em 5 de setembro de 1973, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade e é aposentada.
Ele me disse: ‘Se você sair viva daqui, o que não vai acontecer, você pode me procurar no futuro. Eu sou o chefe, sou o Jesus Cristo [codinome do delegado de polícia Dirceu Gravina]’. Ele falava isso e virava a manivela para me dar choque. Ele também dizia: ‘Que militante de direitos humanos coisa nenhuma, nada disso, vocês estão envolvidos’. E virava a manivela. Havia umas ameaças assim: ‘Vamos prender todos os advogados de direitos humanos, colocá-los num avião e soltar na Amazônia’. Nos outros interrogatórios, eles perguntavam qual era a minha opção política, o que eu pensava, quem pagava os meus honorários, quais eram os meus contatos no exterior, o que eu pensava do comunismo. Para mim, fi cou muito claro que eles queriam atemorizar advogado de preso político. Havia uma mudança no tom das equipes. Eram três, e ia piorando. Durante o interrogatório da segunda equipe, eu levei uma bofetada de um e o outro me segurou: ‘Está bravinha porque levou uma bofetada?’. E os homens da terceira equipe diziam: ‘Saia disso, onde já se viu defender esses caras, gente perigosíssima, não se meta nisso!’. Eu estava formada havia menos de um ano, e trabalhava desde o segundo ano no escritório do advogado José Carlos Dias, defendendo presos políticos. Essa era a forma que eu tinha de resistir à ditadura militar, foi minha opção de participação na resistência. Eu fui presa sem nenhuma acusação, fiquei três dias lá sem saber porque estava presa. No terceiro ou quarto dia, eu descobri o motivo: teriam achado num ‘aparelho’ um manuscrito do Carlos Eduardo Pires Fleury, que tinha sido banido do país e que foi meu colega e cliente no escritório. Eu não fui das mais torturadas. Levei choque uma manhã inteira, acho que para saber se eu tinha algum envolvimento com alguma organização clandestina e paraque os advogados soubessem que não era fácil para quem militava.
MARIA LUIZA FLORES DA CUNHA BIERRENBACH era advogada de presos políticos quando foi presa em 8 de novembro de 1971, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade, onde é procuradora do Estado aposentada.
 Muitos deles vinham assistir para aprender a torturar. E lá estava eu, uma mulher franzina no meio daqueles homens alucinados, que quase babavam. Hoje, eu ainda vejo a cara dessas pessoas, são lembranças muito fortes. Eu vejo a cara do estuprador. Era uma cara redonda. Era um homem gordo, que me dava choques na vagina e dizia: ‘Você vai parir eletricidade’. Depois disso, me estuprou ali mesmo. Levei muitos murros, pontapés, passei por um corredor polonês. Fiquei um tempão amarrada num banco, com a cabeça solta e levando choques nos dedos dos pés e das mãos. Para aumentar a carga dos choques, eles usavam uma televisão, mudando de canal, ‘telefone’, velas acesas, agulhas e pingos de água no nariz, que é o único trauma que permaneceu até hoje. Em todas as vezes em que eu era pendurada, eu fi cava nua, amarrada pelos pés, de cabeça para baixo, enquanto davam choques na minha vagina, boca, língua, olhos, narinas. Tinha um bastão com dois pontinhos que eles punham muito nos seios. E jogavam água para o choque fi car mais forte, além de muita porrada. O estupro foi nos primeiros dias, o que foi terrível para mim. Eu tinha de lutar muito para continuar resistindo. Felizmente, eu consegui. Só que eu não perco a imagem do homem. É uma cena ainda muito presente. Depois do estupro, houve uma pequena trégua, porque eu estava desfalecida. Eles tinham aplicado uma injeção de pentotal, que chamavam de ‘soro da verdade’, e eu estava muito zonza. Eles tiveram muito ódio de mim porque diziam que eu era macho de aguentar. Perguntavam quem era meu professor de ioga, porque, como eu estava aguentando muito a tortura, na cabeça deles eu devia fazer ioga. Me tratavam de ‘puta’, ‘ordinária’. Me tratavam como uma pessoa completamente desumana. Eu também os enfrentei muito. Com certa tranquilidade, eu dizia que eles eram seres anormais, que faziam parte de uma engrenagem podre. Eu me sentia fortalecida com isso, me achava com a moral mais alta.
DULCE MAIA, ex-militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), era produtora cultural quando foi presa na madrugada de 26 de janeiro de 1969, em São Paulo (SP).Hoje, vive em Cunha (SP), é ambientalista, dirige a ONG Ecosenso e é cogestora do Parque Nacional da Serra da Bocaina.

sábado, 22 de março de 2014

ASPECTOS DOUTRINÁRIOS E JURISPRUDENCIAIS A ACERCA DA GREVE NO SERVIÇO PÚBLICO

uma análise da decisão do STF ao suprir a omissão do legislativo

Vitória dos Santos Lima Queiroga


Resumo: O presente artigo analisa o direito de greve do servidor público, inserido no art. 37, inciso VII da CF/88, antes e após a decisão do STF em 2007, quando se supriu a lacuna legislativa por meio dos Mandados de Injunção 670, 708 e 712. Através de uma pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, examina-se a mudança de posicionamento da Suprema Corte, ao decidir declarar a omissão do legislativo, assim como aplicar, por analogia, ao setor público, no que couber, a lei de greve da iniciativa privada (Lei. 7.783/89). Primeiramente, discorre-se acerca do direito de greve no ordenamento jurídico brasileiro. Posteriormente, verificam-se as controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais quanto ao exercício do direito de greve no setor público, anteriormente à decisão da Suprema Corte, diante da falta de regulamentação infraconstitucional. Por fim, avalia-se como o Supremo Tribunal Federal, visando a concretizar um direito constitucionalmente garantido, conciliou a Lei 7.783/89 com as peculiaridades do serviço público.
Palavras-chave: Direito de greve, Servidor público, Mandado de injunção.
Abstract: The present work analyses the right to strike in the public sector laid out in the Federal Constitution of 1988 in its article 37, section VII, before and after The Supreme Court decided to close the legislative gap through the Writs of Injunction 670, 708 and 712. Through a bibliographical and jurisprudential research, this paper examines the shift of positioning of the Court, on declaring the omission of the Legislative Power and applying, when possible, the Law 7.783/89, which refers to the private sector. Firstly, the paper presents the right to strike in the Brazilian legal system. Subsequently, due to the infraconstitutional gap, doctrine and jurisprudence controversies are verified so as to clarify the opinions concerning the right to strike in the public sector before the Court’s decision. Last but not least, the paper evaluates how the Supreme Court, with a view to accomplish a constitutional right, reconciled the law 7.783/89 with the subtleties of the public service.
Keywords: Right to strike, Public sector; Writ of injunction
Sumário: 1.Introdução; 2. O Direito de Greve no Ordenamento Jurídico Pátrio;2.1 Limitações Constitucionais;2.3. Demais limitações trazidas pela lei 7.783/89; 3 O Direito de Greve do Servidor Público à Luz da doutrina e da Jurisprudência: O Cenário Anterior à Decisão Histórica do STF; 3.1 Eficácia e aplicabilidade do art. 37, VII da CF/88: o modelo de José Afonso da Silva;3.3 Competência;3.3.1 Para a edição da lei (lei complementar X lei específica);3.3.2 Para a solução dos conflitos de greve; 3.4 Por que a Lei nº. 7.783/89, em princípio, não se aplicaria à greve do servidor público?;3.5 Remuneração durante a greve; 3.6 A questão da Negociação coletiva; 4 Direito de Greve Do Servidor Público: O STF Frente à Omissão Do Legislativo; 4.1 O mandado de injunção como instrumento ao exercício dos direitos fundamentais; 4.2 A mudança de posicionamento do STF quanto à greve do servidor público; 4.2.1 Qual a eficácia do art. 37, VII segundo a atual posição do STF?; 4 .2.2 Quais os Efeitos da Decisão?; 4.2.3 A solução para suprir a lacuna do legislativo; 4.2.4 Justificativas apresentadas para a concretização; 4.2.5 Quanto à possibilidade de negociação coletiva; 4.2.5 Quanto à possibilidade de negociação coletiva; 4.2.6 A questão dos serviços essenciais e o princípio da continuidade do serviço público; 4.3 Análise da decisão: o STF atropelou a competência do legislativo?; 4.4 Recentes posicionamentos do STF; 4.4.1 Quem não pode fazer greve?;4.4.2 Pode haver punição aos grevistas?;5.Conclusão; Referências.

POLICIAIS NÃO TÊM DIREITO A GREVE, DECIDE GILMAR MENDES

Serviços públicos desenvolvidos por grupos armados são análogos aos dos militares e, portanto, encaixam-se na proibição do direito à greve. Com essa tese, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, considerou correto o corte de ponto de policiais federais que fizeram paralisação a partir de janeiro deste ano em todo o país.
O ministro (foto) negou nesta segunda-feira (17/3) pedido da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef), que tentava derrubar decisão da 13º Vara Federal do Distrito Federal liberando a União de aplicar os cortes. A entidade relatou que, embora tenha comunicado previamente as paralisações, a categoria foi surpreendida por ameaças de punições pelos dirigentes de superintendências regionais.